Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Do problema à trama, e os círculos da ineficácia.

4,5
Algumas sinopses elaboradas para O Círculo (The Circle, 2017) já me instauram, particularmente, um medo: entregando de bandeja o ponto de virada da trama em que Mae Holland (Watson) passará a filmar a si mesma ostensivamente como parte do protocolo de avanço da empresa que dá título ao filme, é imediatista pensar que o trabalho da ficção-científica é exatamente este: elevar um nervo social exposto e que se vende como preocupante (ou seja: problematiza a si mesmo sem que nos esforcemos) e elevá-lo, por um ato de ficção imaginativa, a uma pontada de extremismo. Por um mesmo enraizamento de mecanismo funcionam as distopias: a conexão com nosso “real” é tão sutil, ainda que bastante íntima, e o grau de projeção no futuro é tão absurdo que só resta pensar: de fato, é para ali que podemos muito bem ir. Qual a proposta da empresa Círculo? A partilha sem limites como chave para maior humanização. E qual o fiasco do filme Círculo? Intoxicar, empanturrar, injetar, alimentar histericamente seu pretexto com a transparência de uma problemática social, até o ponto em que o “filme” ganha aspas, porque tudo nele contido poderia se resumir numa postagem de desabafo de rede social.

Parece-me curioso que o autor da obra em que se baseia o “filme” (vou aspeá-lo até o fim) o tenha co-roteirizado: o espanto não se dá com a proliferação de obras literárias adaptadas para o cinema cujo conteúdo ficcional-especulativo de fato problematize algo – O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) e a franquia Jogos Vorazes (The Hunger Games) são exemplos cristalinos. É até mesmo tolo sugerir que o problema está no gesto crítico. De forma alguma o é. A questão, e aproveito para ligá-la, enfim, a curiosidade do convite ao autor da obra para também roteirizá-la, que afoga O Círculo num oceano de auto-sabotagem é precisamente o sucesso (antes fosse uma tentativa!) paradoxalmente execrável em aliar todo o andamento da trama a uma multiplicação de insights sugestivos sobre a temática do compartilhamento digital e da perda de individualidade, como se estivesse nada disfarçadamente apontando, o tempo inteiro: “vejam como estamos indo mal, mas vejam também como podemos nos atolar cada vez mais”.

Enquanto que o único louro da obra me era, até certo momento, o salto de ultrapassagem no didatismo para uma inserção imediata no que quer que a empresa fosse (a imagem, a princípio, fala por si só, não precisa ser explicada), o “filme” acaba por se tornar o reflexo perfeito de tudo o que a empresa toma ares de ser: o mundo perfeito do panteão publicitário: espertinho, rápido, dinâmico, que entretém, que se positiva irrestritamente. De maneira ainda mais curiosa, e a esperança é que seus criadores disto tenham se apercebido, tudo derroca por funcionar de maneira circular, e, portanto, exaustivamente previsível, num curto espaço de tempo: não há outra circunferência de ação para a protagonista senão o círculo que ela descreve como aliviante: de acordo com certa teoria grotesca e neo-hobbesiana (culparei Eggers, o escritor), assim como o egoísmo e a individualidade levam-na a fazer coisas de maneira solitária, impulsiva e até mesmo errada (?), o fato de que estava sendo observada o tempo inteiro retira de sua escapatória (?) a probabilidade da sorte ou do esforço próprio, afinal, o grande Big Brother sempre estará ali para salvá-la, de maneira que o compartilhamento ininterrupto não só a impedirá de cometer bobagens (?), como não privará pessoas em quaisquer tipos de outras condições de sentirem as coisas com ela; portanto, não há mais egoísmo ou solidão, somente felicidade (?). A resultante, aqui, é que não sei qual dos três elementos é mais pobre: seu pretexto obtuso, sua experiência-prova risível, ou suas conclusões infantis de cientista social.

Mas não há miradas além da própria capacidade apenas na elucubração sociológica: tão previsíveis as estruturas circulares dentro da própria trama, que farão sua protagonista fincar as ações entre o otimismo, a manipulação e o arrependimento, para de novo recomeçar neles, também esperada (tanto quanto era ansiosa a expectativa de que se escapasse deste vício) era a megalomania trans-pessoal a que Hollywood tem se lançado sem freios: não basta agitar as arestas do social, é também preciso ir sempre mais longe, tocar o político, fazer com que a “obra” se enobreça por, digamos, atirar para todas as direções, ter a abrangência falsa (porque ineficaz e pobre) do político, mas só por recair na facilidade do fato que toma para si de que tudo pode muito bem ser político. 

Daí que tudo vira peões. Na escalada do tudo-abarcar, acessorizar se torna um mero detalhe. O designer do programa se torna um fugitivo porque o fascismo tomou conta de sua ideia original (mas o olho-que-tudo-vê de alguma maneira milagrosa não consegue encontrá-lo, e, aliás, seu papel na trama se anuncia e se apaga com velocidade incrível); a amiga que a insere no mundo do Círculo e o suposto par romântico e puro só têm relevância nas vias de empurrar a protagonista (nos círculos emperrantes de seu falso heroísmo), ou seja, e como é esperado no filme de teoria social, não possuem autonomia ou vida própria; toda a ideia de hiper-visualização e partilha sensível do mundo fica adormecida nas obviedades serventes à teoria, até que o grande plot-twist final se dê mais por um decurso óbvio da fluência do rio do que por um arroubo de genialidade do roteiro. E se de alguma lição serve seu final, não é para mostrar o quanto seu caráter inconclusivo não conseguiria sustentar, desde o princípio, a robustez de análise social a que se propõe, mas para provar, de uma vez por todas, que a completa falta de sentido, orientação e motivos é a nova constituição que rege o cinema comercial (falo dele sem nenhum apelo negativo ou dissociativo entre arte-indústria): sua única exclusividade é, já há um certo tempo, o entretenimento puro e impensado. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.