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Cloud - Nuvem de Vingança

(Kuraudo, 2024)
7,3
Média
8 votos
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Críticas

Cineplayers

Entre dados, dívidas e disparos.

8,0

Após uma trilogia de obras menores e investigações mais sutis sobre o horror social japonês, Kiyoshi Kurosawa retorna com um vigor inesperado em Cloud - Nuvem de Vingança (Kuraudo, 2024), talvez seu filme mais desesperado em anos — e, paradoxalmente, também um dos mais formais. O longa se estrutura inicialmente como um drama de sobrevivência urbana: acompanhamos Yoshii, jovem adulto atolado em dívidas, sobrevivendo às margens de uma economia informal digital que gira em torno da revenda de produtos usados e mercadorias falsificadas. Um pequeno trambiqueiro à moda antiga em um mundo novo demais. É nesse terreno que Cloud finca sua estaca: a hiperconexão contemporânea como prisão, como armadilha, como fantasma.

A trama toma corpo quando Yoshii passa a ser assediado por um grupo de consumidores insatisfeitos que, organizados pela lógica de fóruns obscuros e mensagens encriptadas, iniciam uma perseguição real — no sentido físico — contra ele. Da retaliação comercial à ameaça de morte é um pulo. O filme se transforma, então, em uma espiral paranoica onde o medo do “offline” é tão palpável quanto o som de um disparo no beco. Não há escapatória quando a própria existência está atrelada ao desempenho digital, à reputação virtual, ao CPF atrelado ao PIX. A violência nasce de uma insatisfação miúda, mas logo vira ritual, quase uma purgação coletiva. Uma pequena guerra civil de consumidores descontentes, encarnando o caos de um capitalismo de plataformas levado ao paroxismo.

Cloud se constrói como uma resposta tensa e quase inevitável à precarização da vida nas metrópoles, não só no Japão. Kurosawa sabe que o terror contemporâneo não mora mais nos becos escuros ou nos espíritos esquecidos, mas nos alertas de notificação, nos rastros digitais e na invisibilidade social que ronda os que caem fora do sistema. A perseguição a Yoshii é brutal não apenas pelo que acontece, mas por quem a executa: pessoas comuns, de perfis anônimos, tão desesperadas quanto ele. Um submundo onde as diferenças entre vítima e algoz se apagam sob o véu da amoralidade cotidiana.

É também um filme onde a estética digital,  já explorada por Kurosawa desde Pulse (Kairo, 2001), é elevada a uma materialidade desconcertante. A imagem, granulada, plana, muitas vezes “feia”, compõe o mal-estar mais do que qualquer trilha ou mise-en-scène elaborada. Os corpos filmados à distância, quase sempre imóveis ou encurralados, transformam cada interação em um ritual de contenção. E quando a ação explode, é seca, longa, árida, quase antiespetacular. A longa sequência de tiroteio no terceiro ato, em planos abertos e duração cruel, remete mais ao desgaste físico do que à adrenalina. Kurosawa filma o tiroteio como quem observa um colapso nervoso em tempo real. Há ecos dos últimos filmes de Cronenberg aí: a carne como algo exposto, o digital como lente que não poupa nem disfarça.

Curiosamente, Cloud se aproxima também de certo espírito do heroic bloodshed, mas com um olhar zombeteiro, desencantado. Se há heroísmo aqui, ele é acidental, involuntário, fruto do esgotamento. Yoshii não quer salvar ninguém — apenas se salvar. Os códigos de lealdade são substituídos por uma lógica de sobrevivência que transforma todos os laços em transações. O mundo de Cloud não é habitado por vilões de gabinete ou CEOs maquiavélicos, mas por freelancers, entregadores, microempreendedores em colapso. Toda ação tem consequência porque todo movimento está sob rastreio.

Mas talvez a maior força do filme esteja em sua fluidez simbólica: Cloud parece narrar uma história simples, mas cada gesto e cada objeto carrega peso metafórico. Yoshii pode ser lido como uma figura quase espectral, um fantasma digital que destrói (ou desestrutura) a vida de quem o persegue, sem nunca estar completamente presente. Ele desaparece dos mapas, escapa dos rastros, vira ruído. Um eco das vidas que deixamos se automatizar.

Por fim, há um senso de completude trágica em como Kurosawa encerra esse conto. Sem precisar explicar, o diretor sugere (como sempre) que as respostas são menos importantes do que o mal-estar que permanece. Cloud é um filme que nunca escolhe o caminho mais fácil: prefere o incômodo à resolução, a ambiguidade à moral clara. E, por isso, talvez seja uma das obras mais honestas sobre este tempo em que o real já se encontra irremediavelmente contaminado pela lógica digital.

Em um ano tomado por produções sobre vigilância, IA e o futuro da comunicação, Cloud se destaca não por antecipar, mas por observar, com uma serenidade cruel, o presente. Um filme sobre o agora, feito com as ferramentas do medo.

Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.

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