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Críticas

Cineplayers

Em construção.

9,5
Linhas retas; a câmera filma esses encontros entre as linhas, secos e diretos. Na abertura, o homem observa um campo na chuva. Ele se molha, e é resgatado dos pingos por uma ruidosa secretária. Zelo. Ao atender o telefone, a mulher se desliga do homem, que volta para a chuva. Ele cai, ela se desespera e corre até ele. A montagem corta antes do encontro. Nas cenas seguintes saberemos que esse homem é um importante e idoso arquiteto, convidado de uma série de palestras em uma universidade americana de arquitetura. O homem é oriental, e está muito longe de casa, aparentemente desde sempre. A certeza da arquitetura é contrastada com a irregularidade do ser humano, capaz de erros que a arte não permite. Sim, a arquitetura é uma arte e será debatida com o respeito, a admiração e o desejo que se dispensa a qualquer uma. Difícil acreditar que Kogonada nunca tinha dirigido um longa, com toda a precisão que constrói uma narrativa tão cheia de camadas por 1 hora e 40 minutos. Há maturidade por toda parte.

Uma jovem trabalha na biblioteca. O filme dá dicas: ela é muito talentosa, tem chances de entrar na faculdade que quiser, mas preferiu não se afastar de sua cidade, embora seus olhos não escondam a ânsia. À noite, ela dirige até um estacionamento, senta em seu capot e chora. Essa jovem chama-se Casey e é interpretada com vigor por Haley Lu Richardson, desde já uma revelação e uma promessa. Esse mesmo lugar que leva emoção a Casey será exibido com maior rigor mais pra frente. O universo que Casey escolheu pra si é complexo, com o assédio tímido de um colega de biblioteca e uma mãe emocionalmente dependente, com segredos na superfície prestes a fazer diferença. Casey não difere em nada de outros jovens que parecem com ela, com o agravante de que ela sabe o que quer, e deliberadamente optou por desviar dos seus trilhos. Casey tem na observação uma característica marcante, e é através da personagem que o filme encontra fôlego para fazer da arquitetura mais do que uma arte, mas uma contradição do interior de sua dupla de protagonistas.

Chegamos então a Jin, um homem no meio. Chegando à capital de Ohio onde o filme se ambienta, Jin não tem qualquer contato com o pai, por quem nutre profunda mágoa. No passado, a criança e sua mãe foram preteridos pela arte do pai. Hoje, após a abertura do filme, Jin precisa encontrar o pai para agilizar a burocracia de um homem com o qual não criou relação. Essa situação toda implode o personagem vivido por John Cho a olhos vistos, e o famoso comediante sai da zona de conforto com uma interpretação comovente. Jin e Casey irão se encontrar, e a despeito da diferença de idades bastante considerável, algo nascerá dessa união. Esqueçam processos românticos: Jin pede um cigarro a Casey, e eles travam a partir daí uma espécie de reconhecimento um do outro, que os levará a desdobramentos muito humanos sobre arquitetura, relações familiares e o deslocamento logístico típico do nosso tempo, que nos mergulha numa melancolia da qual ninguém está livre.

Kogonada é definitivamente um achado. Colaborador constante em extras para a Critterion Colection, ele tinha um roteiro que mostrou a Chris Weitz, que aceitou produzir a estreia de um diretor inexperiente. Nascido em Seoul e criado no meio oeste americano, ele incorpora elementos de inadequação espacial em seus personagens protagonistas e isso aos poucos vai os aproximando das características concretas da arquitetura especificamente da cidade de Columbus, que parece ter sido construída sob uma proposital égide da estranheza, nunca deixando de ser bela e impactante. Nos longos passeios de Casey e Jin, seu diretor não vai apenas aos poucos revelando essa desconstrução imagética da cidade e seus espaços públicos, mas sutilmente vai revelando as camadas de seus ímpetos para com seus pais. Enquanto Jin não pertence mais a seu pai e precisa deixar isso claro, Casey tem um forte laço de afeto com sua mãe, e isso claramente a está murchando. De alguma forma, as vidas desses dois personagens não poderiam ser mais diferentes, mas ambos precisam exorcizar os demônios que os ligam as pessoas que os geraram.

Realizando um filme que chega a um lugar onde raramente se chega com felicidade, Kogonada consegue manter o interesse por uma trama que é bem mais habilidosa do que precisava ser para entregar não apenas um produto superior, como principalmente o filme que existia da forma como concebeu de fato; um belo roteiro, nada subserviente mas também próximo e emocional. As relações entre perdas e ganhos que vão sendo descortinadas diante das construções desastradas de alicerces familiares capengas vão tomando a forma crível de alguma das belas criações arquitetônico-urbanas do filme, incluindo uma obsessão com uma ponte que é delicadamente desejada pelo autor. A fragilidade da sociedade atual para com o futuro e as amarras frouxas com o qual o passado se solidificou se traduzem não apenas nos debates suaves da principal relação do filme. Os encontros de Cho com a personagem de Parker Posey (que tem cenas belíssimas como há muito não tinha) e a bonita história de mãe e filha entre Richardson e Michelle Forbes (que tem a mais emocionante cena fora de quadro do ano) são exemplos do que é carregado de carinho, humanidade e ao mesmo tempo arrependimento nos tempos atuais: seres humanos não são construções fixas e concretas, mas um amontoado disforme de sentimentos bons e ruins, que empilhados, não fazem o mais bonito dos quadros. Mas diferente do concreto, estão sempre aptos de reconstrução e renovação.

Comentários (1)

Felipe Lima | segunda-feira, 25 de Setembro de 2017 - 11:59

Muito bom, Carbone! Sempre bom ler algo que faz jus ao filme!

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