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Críticas

Cineplayers

Apesar de chupar da fonte de diretores internacionais consagrados, o filme é uma nova experiência estética para o cinema nacional.

7,5

Em certo momento de A Concepção, tive a impressão de estar diante de uma revisita ao filme Os Idiotas, de Lars Von Trier. Que o filme se apóia em uma premissa semelhante não era novidade, mas fiquei surpreso quando uma determinada seqüência me remeteu imediatamente ao exemplar do Dogma 95. O mesmo ocorre, em menor grau, com pelo menos meia dúzia de outros filmes. Assim como o diretor José Eduardo Belmonte foi buscar seu argumento no filme de Von Trier, trouxe também para seu longa os frenéticos movimentos de câmera de David Fincher (Seven, Clube da Luta), a “lente psicodélica” de Danny Boyle (Trainspotting, Extermínio) e os cortes de Darren Aronofoski (Pi, Requiem para um Sonho). Apesar de não apresentar nada de novo, a assimilação desses vários conceitos em um único filme rendeu um efeito interessante.

A obra de Belmonte é plasticamente fantástica. Cada seqüência é trabalhada como se fosse um novo filme, recebendo os mais variados tratamentos de luz, tempo, enquadramentos e captação. O uso de vídeo, super-8, 16 e 35mm são alternados criando um mosaico de texturas, quase uma bagunça. A Concepção, apesar de não ser o primeiro longa de Belmonte (seu debute foi com o ainda inédito Subterrâneos, de 2004) é mais um fruto da chamada “síndrome do estreante”, onde o diretor parece querer a todo custo mostrar tudo o que aprendeu na faculdade. Do mesmo mal padecem os recentes Nina, de Heitor Dhalia, e Redentor, de Cláudio Torres, filmes tão influenciados pela cultura pop que não encontram um estilo para chamar de seu.

A Concepção apresenta um grupo de jovens brasilienses dispostos a destruir o conceito de identidade para se reinventar a cada dia. Essa é a regra principal do manifesto concepcionista (1. Morte ao ego. 2. Ser uma nova personalidade a cada dia. 3. Toda memória deve ser apagada. 4. O dinheiro deve ser abolido. 5. A humanidade está doente, o concepcionismo é o caminho para a cura. 6. O concepcionista é uma fraude que dura 24 horas. 7. O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria), uma espécie de ideologia criada durante uma viagem alucinógena por “X” (Matheus Nachtergaele), o personagem central da trama, chamado dessa forma exatamente porque ninguém conhece seu verdadeiro nome. Os seguidores desse fiapo de doutrina desconhecem qualquer informação sobre o passado de seu guru, apesar de suas habilidades para falsificação de documentos e manipulação de drogas denunciarem antecedentes no mínimo conturbados. “X” é uma figura enigmática, capaz de se transformar completamente em questão de minutos, mudando de feições (também é notável sua habilidade como maquiador) e falando vários idiomas com sotaques propícios a cada ocasião. Enquanto assume uma postura tresloucada em ambientes concepicionistas, "X" se porta como um qualificado homem de negócios para aplicar golpes nas empresas de Brasília.

As reuniões do grupo se resumem a orgias no apartamento de Alex (Juliano Cazarré), um estudante filho de diplomatas que, na ausência dos pais, transforma a casa em um albergue para os concepcionistas, que passam boa parte do tempo bebendo e consumindo todos os tipos de drogas que estão a disposição. Alex compartilha com Liz (Rosanne Holland) e Lino (Milhem Cortaz) não apenas o apartamento, mas um total desdém aos valores que os cercam. Lino introduz o filme com uma narração em off que revela seu desprezo pela vida que leva e pela cidade em que vive. Brasília é mostrada como pano de fundo em tons de inferno pós-apocalíptico. "A cidade que uniria todos os brasileiros criou um cidadão sem referências em um local sem história, sem sotaque, sem identidade", prega o texto "Algumas palavras e Motivações", de José Eduardo Belmonte, escrito para divulgar o filme.

Sem perspectiva alguma, os três são iscas fáceis para a "filosofia" de "X". O guru não precisa de maiores esforços para conquistá-los, levando-os a praticar uma série de atos ilícitos em nome de cada uma de suas novas identidades. Liz é a mais dedicada em satisfazer os ideais do grupo. Já Ariane (Gabrielle Lopes), é a única que questiona o movimento. Ariana surge no grupo por acaso: após uma tentativa de suicídio, ela acaba sendo levada para o apartamento de Alex, onde conhece a rotina concepcionista. Enquanto os personagens do filme de Lars Von Trier se reúnem em uma mansão vazia e passam a agir como idiotas - ou, como um certo personagem diz: "como nós somos de verdade, quando despidos de imagem social" -, o trio de A Concepção usa o movimento como mote para elevar seus níveis de "porra-loquice". São indivíduos vulneráveis a qualquer influência, desde que esta lhes permita todos os tipos de excessos. Quando "X" tem uma atitude drástica para torná-los concepcionistas de verdade, o enredo toma um rumo surpreendente.

Despreocupado em desenvolver os personagens, o filme dedica-se em mostrar as muitas seqüências de sexo e uso de drogas entre eles, através dos recursos citados. Destaco o ménage à trois masculino. A cena, que parece ter sido rodada em suporte digital, usa pouquíssima luz. Belmonte posteriormente manipulou a velocidade dos frames em toda a seqüência, conseguindo um resultado extremamente realista. "X" é o único personagem que alcança algum nível de densidade. Em parte graças à atuação de Nachtergaele, que, apesar da baixa estatura (explicitada pelo porte de modelo dos outros intérpretes), dá a seu personagem uma dimensão maior do que o texto pede. A Concepção é uma ótima oportunidade para o ator mostrar sua capacidade camaleônica, assumindo um novo personagem a cada momento do filme.

Assim como Cama de Gato e Amarelo Manga, A Concepção é um projeto da produtora Olhos de Cão, selo disposto a realizar filmes de baixo orçamento e com temáticas polêmicas. Muito bem sucedida em todos os casos, a produtora vem acumulando prêmios em vários festivais nacionais. A Concepção iniciou sua carreira no último Festival de Brasília, de onde saiu com os prêmios de melhor trilha sonora e melhor montagem para o trabalho de Paulo Sacramento (O Prisioneiro da Grade de Ferro) e José Eduardo Belmonte, além das premiações Saruê e Câmara Legislativa, do mesmo festival. Desde lá vem acumulando prêmios e dividinho opiniões por onde passa. A Concepção, apesar das minhas suspeitas de que seja essa sua pretensão, não vai mudar a vida de ninguém, mas vale como uma boa experiência estética no cinema brasileiro.

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