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Críticas

Cineplayers

Being Robin Wright.

6,5

Em abril de 2009, ao escrever sobre Valsa com Bashir (Valse avec Bachir, 2008), tive a clara sensação de que estava diante do melhor filme que seria exibido no circuito comercial brasileiro daquele ano. De fato, nada do que estreou nos 10 meses seguintes superou a qualidade da animação dirigida pelo israelense Ari Folman, cuja carreira até aquele momento era mais voltada a produções da TV local. Partindo do execrável massacre dos campos de concentração de Sabra e Shatila, ocorrido em setembro de 1982, em Beirute, Folman tinha uma proposta ambiciosa: de um lado, em um registro mais intimista, abordava o poder, o dinamismo e as pequenas traições que a memória é capaz de provocar no inconsciente humano; de outro, na chave mais metalinguística, questionava o poder do cinema em lidar com determinas realidades.

Cinco anos depois, e novamente combinando elementos do live-action com o cinema de animação, Folman volta ao circuito nacional com O Congresso Futurista (Le Congrès, 2013). Se o resultado final não atinge o mesmo nível da obra anterior, a originalidade na narrativa, a profundidade nos temas discutidos (no limite, os mesmos tratados em Valsa com Bashir), e a paixão pelo projeto, já são suficientes para tornar este trabalho um programa obrigatório para os que apreciam um cinema mais exigente e reflexivo.

A atriz Robin Wright (Robin Wright) já não é mais nenhuma criança. Aos 44 anos, mãe de Sarah (Sami Gayle), uma adolescente rebelde, e de Aaron (Kodi Smit-McPhee), que possui uma doença degenerativa que compromete paulatinamente sua audição e visão, ela já esgotou sua cota de fracassos na profissão. Os tempos de A Princesa Prometida (The Princess Bride, 1986) e Forrest Gump - O Contador de Histórias (Forrest Gump, 1994) ficaram para trás e, se antes ela era vista pelos estúdios como uma nova Grace Kelly, nos dias atuais seu nome representa um investimento de alto risco. Robin recebe esse choque de realidade logo na primeira sequência do filme, quando Al (Harvey Keitel), seu agente, a obriga a deixar de lado seu difícil temperamento e sua atroz insegurança, e ouvir a proposta que Jeff Green (Danny Huston), o chefe da Miramount (uma óbvia e até mesmo ingênua referência à Miramax e Paramount), tem a lhe oferecer.

Jeff pretende escanear a imagem de Robin e transformá-la em um arquivo de computador, adaptável a qualquer projeto cinematográfico bancado pelo estúdio. Pela lógica da Miramount, o contrato beneficia a todos: de um lado, Robin ganha a eterna juventude, que ficará impressa (ou digitalizada) na tela para todo o sempre; de outro, o estúdio se livra de todo o pacote que inevitavelmente a acompanha em qualquer de seus filmes: empresários gananciosos, depressões, conflitos amorosos, vícios diversos, inseguranças, ego, vaidade e por aí vai. O estúdio faz apenas uma exigência: Robin nunca mais poderá atuar na vida, seja em peças de teatro, televisão ou até mesmo em festinhas do colégio das crianças. Sem muitas opções e precisando de tempo e dinheiro para tratar da doença de seu filho, Robin topa a parada. O tempo passa. 20 anos depois, ela retorna ao prédio da Miramount para participar de um estranho congresso, cujos participantes assumem as versões animadas de qualquer pessoa que desejarem, e discutir uma possível renovação do seu contrato.

O Congresso Futurista é livremente baseado no livro de mesmo nome, escrito em 1971 pelo polaco Stanislav Lem. Sem a mesma fama de autores como Isac Asimov, Philip K. Dick e Kurt Vonnegut (talvez provocada pela dificuldade de se traduzir o texto original em outros idiomas), Lem se tornou mais conhecido somente a partir de 1986, quando Solaris, sua obra mais famosa, escrita em 1961, foi adaptada para o cinema pelo russo Andrei Tarkovski. O diretor Ari Folman, um de seus fãs confessos, sempre quis levar para as telas a sua versão, mas o contexto político do livro envelheceu instantaneamente quando os tijolos do Muro de Berlim vieram ao chão. Folman, então, optou por transpor a história para o mundo do cinema e, por meio do ilimitados recursos da animação, manter-se fiel ao espírito surrealista, lisérgico e transgressor da obra base.

Folman estruturou seu filme em três segmentos: o primeiro, ambientado no mundo real, quem sabe em futuro próximo, é claramente metalinguístico. Por meio Jeff, um espécie de irmão de Tim Robbins em O Jogador (The Player, 1992), Folman destila um veneno inesperadamente ácido, mas pertinente e muito bem humorado, contra as engrenagens de Hollywood. Não sobra para ninguém: estúdios, agentes (vivem na era da pedra), roteiristas (se apaixonam pelos seus personagens), público (apenas 1% do público que viu a trilogia O Senhor dos Aneis teve a paciência para ler o complicado e chato livro de Tolkien), e especialmente os atores (egoístas, vaidosos, inseguros, e que, ainda por cima, envelhecem, engravidam e morrem no meio das filmagens).

Na visão de Folman, em um futuro muito próximo (que, no fundo, já chegou), os estúdios não precisarão mais dos atores, mas apenas das suas histórias passadas (histórias de sucesso, diga-se), que sirvam de gancho para o trabalho de promoção dos filmes seguintes. Como Jeff diz a certa altura, ele não se importa com a idade cronológica de Robin, já que sua imagem será eternizada e digitalmente mumificada no computador, mas sim com lembrança que seus antigos personagens provoca na mente do público. O marketing do estúdio faz o resto.

A tecnologia desenvolvida pela Miramount é tão revolucionária e instigante que é quase impossível não imaginar os impactos que ela poderia ter trazido na indústria cinematográfica: Hitchcock, por exemplo, não precisaria trocar a grávida Vera Miles pela bela mas inexpressiva Kim Novak em Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958). Se Miles assinasse o contrato proposto a Robin Wright, ela poderia curtir sua gestação a quilômetros de distância do local das filmagens e uma réplica computadorizada da sua imagem, dividiria a tela com James Stewart (ele, também, provavelmente, uma versão digitalizada do famoso ator). Outros exemplos: Kim Bassinger não pularia do barco de Encaixotando Helena (Boxing Helena, 1993) aos 45 minutos do segundo tempo, e Marilyn Monroe não provocaria enxaquecas em Billy Wilder durante as gravações de O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955) e Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959). Claro: suas versões cibernéticas seriam incapazes de rescindir contratos, chegar atrasadas aos sets de filmagens e esquecer os diálogos. E uma última: Paul Walker poderia correr à vontade pelas ruas de Los Angeles já que não existiria o risco de os produtores da serie Velozes e Furiosos ficar sem ator em caso de um acidente fatal. Motivo: o Paul Walker.jpg estaria a salvo em algum supercomputador de última geração.

Se é possível brincar com os bastidores dos filmes passados, o fato é que a digitalização da imagem é uma realidade com a qual o cinema já convive há alguns anos. Basta ver os blockbusters produzidos pela Hollywood atual. Os atores já não contracenam uns com os outros. Na maior parte das vezes, atuam para o vazio, imaginam realidades fantásticas e tridimensionais diante de opacas e monótonas telas verdes, e vestem roupas com inúmeros eletrodos ligados a terminais de computador. A capacidade de abstração chegou a um nível que nem Stanislavski estaria preparado. 

Exatamente por ser algo já presente no nosso cotidiano, Folman não pretende discutir a tecnologia em si, mas sim os impactos por ela provocados, sobretudo a desumanização do cinema e a perda da liberdade de escolha dos atores. No filme, Robin Wright está obviamente reticente em aceitar o acordo já que ele implica na total perda de controle sobre sua carreira. O contrato impede que ele decida os seus próximos projetos, sugira alterações no roteiro e nos diálogos. O público, contaminado pela eterna – e artificial – beleza da atriz, continuaria a tê-la como ídolo, mas, na prática, sua carreira estaria encerrada. Como pode um ator abrir mão de tudo isso?

Para Folman, esse é um falso dilema. O diretor parece afirmar que, no modelo da Hollywood atual, a tal liberdade de escolha é uma mera ilusão. Prova disso é a sequência em que o agente tenta convencer sua cliente a assinar o contrato com a Miramount. Para ele a verdade é uma só: ao ser obrigada a gerar altos lucros para os estúdios, ao servir de mero instrumento da visão de um diretor tão ou mais egocêntrico que o seu elenco, ou até mesmo quando precisa beijar atores com mau hálito (!), Robin não passa de um fantoche nas mãos de terceiro. Para quem não se serve da indústria cinematográfica americana, a visão de Folman surpreende pela acidez, honestidade, e uma certa dose de raiva disfarçada de ironia.

Na segunda parte do filme, que se passa no tal congresso, Folman abandona o live-action e parte para a animação de vez. Neste trecho qualquer interpretação é possível. Robin Wright (ou a sua versão animada ou a sua versão chapada que se pensa animada) se hospeda no gigantesco hotel da Miramount Nagasaki (outra ironia de Folman). Aparentemente, ela foi convidada por dois motivos: ter o seu contrato prorrogado por mais 20 anos e receber uma homenagem como um símbolo das atrizes que embarcaram na nova tecnologia, uma verdadeira sobrevivente entre os que restaram da “Velha Hollywood”. Os integrantes do congresso são os próprios personagens criados pela Miramount, que tem a capacidade de se transformar em diferentes celebridades, tais como Elvis Presley e Clint Eastwood, numa simples ingestão ou inalação de um líquido cor-de-rosa. Mais tarde, ficaremos sabendo os responsáveis pela invenção destas substâncias químicas.

Se na primeira parte Folman atacava abertamente a indústria cinematográfica, nesta segunda, o diretor se volta contra o público que dela se alimenta, e que está disposta a tudo para se aproximar dos seus ídolos favoritos, até mesmo a perder sua própria identidade. A crítica surge em diversos momentos: ao chegar no lobby do hotel, Robin observa um casal sem poucos atrativos físicos ingerir o conteúdo de uma ampola para se transformar em John Wayne e Mariyn Monroe.  Em seguida, ao fazer o check-in, a Robin Wright real descobre que outras cinco pessoas antes dela se hospedaram com o seu nome e a sua aparência. Wright percebe a gravidade da situação e tenta alertar os convidados na hora do seu discurso de agradecimento em sua homenagem. Mas é interrompida por uma estranha rebelião, cuja origem nunca é exatamente explicada: tanto pode ser uma revolta dos próprios personagens, insatisfeitos por não terem vida própria além das inventadas pelos seus roteiristas, ou pessoas de fora interessadas em roubar a nova droga inventada pela Miramount Nagasaki.

A rebelião é o gancho para o terceiro bloco, misto animação, misto live-action, em que Folmam expõe sua visão pessimista do futuro da humanidade, que se vê dividida entre encarar os problemas, as doenças e a desesperança do dia a dia, ou partir para uma realidade paralela, alucinógena e ambientada exclusivamente no próprio inconsciente.

O Congresso Futurista é original e atual, mas também imperfeito. A transição entre o primeiro e o segundo, de tão radical, faz o filme se afastar dos clichês narrativos a ponto de perder contato com o seu público por um tempo demasiadamente longo. Além disso, o retrato pós-apocalíptico do terceiro terço não se incorpora ao contexto da história de uma forma plenamente orgânica, deixando dúvidas, inclusive, sobre qual o sentido da mensagem de Folman (os humanos se deixam alucinar para fugir da dureza do cotidiano ou simplesmente para experimentar a sensação de viver a vida de uma celebridade?). Por fim, algumas boas sacadas do roteiro também não são inteiramente aproveitadas, como a versão animada de Tom Cruise ou a metáfora da pipa.

Embora O Congresso Futurista seja um filme mais de ideias do que interpretações, o elenco faz a sua parte com categoria. Robin Wright demonstra coragem ao se desnudar diante das telas em um papel explicitamente auto-referencial, com menções aos seus fracassos, profissionais e pessoais (Sean Penn deve ter se incomodado com a citação implícita), e à sua difícil personalidade. Em certo sentido, seu personagem se aproxima do vivido por John Malkovich em Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999). Em certos momentos, especialmente no trecho animado, sua passividade irrita um pouco (por mais de uma vez fiquei esperando uma resposta mais enfática nas várias vezes que ela é humilhada pelo chefão do estúdio, pelo agente ou pela própria filha), mas esse problema deve ser creditado mais na conta do roteiro do que na atriz. Entre os coadjuvantes, destaque total para Danny Huston. Maquiavélico e sedutor na medida exata, ele não corta todas as bolas levantadas pelos afiados diálogos que Folman lhe proporciona e transforma suas duas sequências nas mais lembradas após o fim da projeção. Harvey Keitel (bastante envelhecido), se sai bem ao construir um tipo que alterna o lado machão (quando dá lições de moral à sua cliente), sentimental (quando se declara a ela), e bobo da corte (na frente do chefão do estúdio). E Paul Giammatti demonstra a ternura e delicadeza exigidas pelo seu personagem.

Folman usa e abusa das referências cinematográficas: no primeiro terço, é possível identificar citações explícitas não apenas aos antigos trabalho de Robin Wright [(“como era mesmo o nome dela em Um Tiro de Misericórdia (State of Grace, 1990)?”], como a outras mais sutis, como a da leitura labial, que nos remete a 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Spacey Odissey, 1968), e a do escaneamento, que parece uma combinação de Matadouro 5 (Slaughterhouse 5, 1972) com Brazil - O Filme (Brazil, 1985). O trecho animado é um amálgama dos traços de Miyazaki, Ralph Barsky e até mesmo Walt Disney. Kubrick é lembrado mais em vez numa citação explícita a Doutor Fantástico (Doctor Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964). E o último ato, ainda que não os mencione abertamente, me lembrou o clima de desilusão de A Estrada (The Road, 2009) e Sinédoque, Nova York (Synedoche, New York, 2008).

Profundo sem ser excessivamente cerebral, mordaz sem querer parecer esperto, atual sem ser oportunista, e terno sem ser piegas (repare na bela e tocante sequência final), O Congresso Futurista pode não atingir o mesmo resultado de Valsa com Bashir, mas ratifica Ari Folman como um das cabeças pensantes mais interessantes do cinema mundial atual.

Comentários (7)

Rodrigo Torres | sexta-feira, 11 de Abril de 2014 - 00:01

Um dia, Régis diz que tá com dificuldades de escrever sobre o texto. (fofoca de bastidores, enjoy!)

No outro, um puta texto gigante!

Gosto de ver! 😁

Daniel Dalpizzolo | sexta-feira, 11 de Abril de 2014 - 00:07

ele deve ter travado na quarta página do word quando desabafou.

Régis Trigo | sábado, 12 de Abril de 2014 - 16:06

Quando falei que não tinha entendido nada do filme, ainda não tinha começado o texto. Depois vi o filme mais umas duas vezes pra montar o quebra-cabeça, mas muita coisa ainda permanece sem resposta. Mas a graça está justamente nisso. Quem puder enviar para este espaço as suas próprias interpretações do que viu, será legal.

Caio Henrique | domingo, 13 de Abril de 2014 - 23:15

O filme se equipara a certo nível com a idéia trazida no filme do Spike Jonze como foi bem citada em vosso texto meu jovem. Um lance que eu achei fantástico do Folman é na comparação que ele faz dos artistas de uma forma geral aos deuses(tanto na cultura atual quanto na antiga) e os coloca no mesmo patamar de adoração. Filme muito viajado, mas vale pelas inúmeras referências que estão jogadas ali como easter eggs. Só não barra Waltz with Bashir ainda.

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