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Críticas

Cineplayers

O espetáculo impressionista de Isao Takahata.

9,5

A mais antiga das narrativas populares do Japão, o Conto do Cortador de Bambu, é datada do século X e há tempos vem influenciando gerações e gerações de contadores de histórias devido ao seu caráter lúdico, alegórico e de tocante sensibilidade. A história gira em torno de um camponês humilde que enquanto corta bambus em uma floresta acaba encontrando uma princesinha do tamanho de um dedo polegar dentro de um deles. Junto com sua esposa, ele a adota e se impressiona com tamanha a velocidade com que a garota cresce, logo se tornando uma bela mulher. Com o passar do tempo, cada bambu cortado pelo camponês expele pepitas de ouro que o tornam rico o suficiente para mudar para a cidade e construir ali um castelo que acomode a princesa.

Ao longo dos séculos, a história do cortador de bambu foi ganhando diversas representações no folclore japonês, tendo a princesa Kaguya se tornado um ícone da cultura nipônica. No campo da pintura, os gravuristas japoneses influenciaram a arte ocidental no movimento impressionista, e dessa influência vieram muitas das representações gráficas do conto do cortador de bambu. Demorou para que o conto reverberasse até o cinema, mas a espera valeu a pena e hoje temos disponível a obra-prima O Conto da Princesa Kaguya (Kaguyahime no monogatari, 2013), que milagrosamente estreou no Brasil com apenas dois anos de atraso. O responsável pela empreitada é Isao Takahata, co-fundador do lendário Estúdio Ghibli e mestre da animação mundial, que ostenta no currículo títulos como O Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no haka, 1988), Only Yesterday (Omohide poro poro, 1991) e Meus Vizinhos, Os Yamadas (Hôhokekyo tonari no Yamada-kun, 1999). Embora menos famoso e menos prolífero que seu companheiro Hayao Miyazaki, Takahata é igualmente talentoso e dono de um olhar um tanto mais minimalista e sutil.

A sensibilidade do animador aqui é notada na forma como ele procura se manter fiel às tradições seculares que transformaram a princesa Kaguya em uma personagem de tamanha beleza. Narrativamente falando, o filme segue em um ritmo bem cadenciado, como que sendo lido por uma contadora de histórias para um público infantil, de modo a preservar a raiz lúdica e a fantasia da obra sem se corromper com os males modernos das animações em recorrer a imediatismos apelativos. No entanto, é no visual que O Conto da Princesa Kaguya brilha mais, e não poderia deixar de ser assim em uma animação. Não é surpresa saber que Takahata demorou nada menos que oito anos para concluir os desenhos, todos meticulosamente feitos à mão e à moda antiga. E quando falo de moda antiga, me refiro às animações que precedem até mesmo a era de ouro da Disney, remetendo aos primeiros rabiscos do Mickey Mouse a ganhar vida. As cores esmaecidas, os traços em grafite exposto e os borrões que compõem a paisagem são de um impressionismo espetacular e idílico que não se vê há décadas e décadas no cinema.

Ao mesmo tempo, há muito do cinema japonês na estrutura do filme. Enquanto a condução narrativa nos traz ecos de Yasujiro Ozu, a composição da personagem principal é uma clara referência ao cinema feminino de Kenji Mizoguchi. Kaguya é uma menina livre, fruto mais puro e indomável da floresta, que luta contra as normas sociais de casamentos arranjados, empenhos materialistas e diferença entre as classes camponesa e urbana. Seus primeiros anos no campo, livre e apaixonada pelo contato direto com a natureza, vão aos poucos se acabando quando é levada para viver como princesa na cidade, se sentindo sufocada com a perspectiva de um casamento arranjado. Kaguya não faz parte da natureza, ela é a própria natureza feminina em seu significado mais livre, poderoso e indomável, acima de qualquer regência terrena dos homens, e por isso é umas das melhores personagens do Estúdio Ghibli, ao lado das princesas Mononoke e Ponyo, também representações femininas da força da natureza.

Os traços de Takahata acompanham em borrões coloridos o ímpeto de Kaguya e a narrativa não se apressa em compor delicadamente cada traço desse universo tão mágico, ilimitado, fantástico e criativo (não me lembro de nada recente tão belo quanto a sequência em que a princesa e seu amor de infância voam de mãos dadas até a lua). O Conto da Princesa Kaguya foi anunciado como a obra derradeira do Ghibli e, embora isso seja uma pena, não poderia ter sido título mais apropriado para encerrar as atividades de um estúdio que sempre priorizou, acima de tudo, a força da imaginação e do poder do mundo que existe dentro da mente de cada pessoa, sempre confiante na importância que histórias como essas tem na formação de personalidade e caráter de uma criança. O Conto da Princesa Kaguya é, junto de obras-primas como O Castelo Animado (Hauru No Ugoku Shiro, 2004), Dumbo (idem, 1941) e Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988), a quintessência do cinema animação, a justificativa de um gênero e a essência mais pura e bela do que pode haver não apenas na mente, mas também no coração de uma criança.

Comentários (7)

Lucas Nunes | terça-feira, 21 de Julho de 2015 - 02:34

O Studio Ghibli, sem sombras de dúvidas, é o melhor estúdio de animação que existe!

Nilmar Souza | terça-feira, 21 de Julho de 2015 - 15:34

Só o Heitor poderia escrever pra esse mesmo.

Vi ontem e ainda tô com o queixo no chão com a beleza. O primeiro ato é tão bem feito que chega a ofuscar um pouco o resto. Mas nossa, como é lindo. Lindo demais.

RAPHAEL ANTONIO MORAIS RUELA | sexta-feira, 31 de Julho de 2015 - 16:45

Uma pena saber que o Studio Ghibli irá encerrar suas atividades. No entanto, se esta for sua derradeira obra, encera com uma obra de arte impecável.

Daniel Borges | domingo, 20 de Dezembro de 2015 - 00:33

você é o cara heitor.

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