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Cópia Fiel

(Copie Conforme, 2010)
8,0
Média
341 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Cópia autenticada.

8,0

No primeiro filme rodado fora de sua terra natal, o iraniano Abbas Kiarostami teve este Cópia Fiel saudado como um retorno a um cinema mais narrativo, em comparação ao que o diretor vem fazendo nos últimos anos. Pode ter mudado a moldura do seu cinema (paisagens européias, nenhum iraniano em cena, uma estrela mundialmente conhecida), representando uma bela porta de entrada para o espectador que até então nunca havia tido contato com o seu estilo, porém o diretor permanece o mesmo, tão grande e simples como sempre foi em sua filmografia.

Cópia Fiel é o filme ocidental de Kiarostami, este iraniano cuja obra sempre ressoou de maneira tão universal, mas no fundo se trata de um prosseguimento aos experimentos que tem realizado na última década (Dez [Ten, 2002], Cinco [Five, 2004], Shirin [idem, 2008]). Se a condição em que o filme foi realizado pode ter gerado certa confusão antes do seu lançamento, na tela Kiarostami prossegue um autor sempre disposto a nos desconcertar. E o que é um filme em torno de discussões sobre cópia e originalidade na arte e na vida pode se transformar depois em um dos grandes filmes sobre casais.

Kiarostami gosta de filmar itinerários. O passeio do casal e a sua interação em cena fizeram com que desde as suas primeiras exibições em Cannes os críticos invocassem Antes do Pôr do Sol (Before Sunset, 2004), de Richard Linklater, acerca das conversas dentro do carro (num recurso estético proveniente de um procedimento comum em Kiarostami, o dos efeitos obtidos através de personagens conversando ou simplesmente guiando um automóvel) e das caminhadas entre as estradas e as ruas pela região da Toscana, além de visitas a museus e restaurantes. James Miller (William Shimell) não terá muito tempo na Itália antes de voltar para a Inglaterra, mas viaja pelas proximidades do local em uma tarde com Elle (Juliette Binoche), uma francesa que reside no país com seu filho, após a conferência proferida pelo escritor sobre o seu novo livro, que discute conceitos de originalidades, as noções de falso e autêntico que sempre existiram, e de que com o conceito de originalidade vem a necessidade de autenticidade, de uma identidade cultural. Em sua palestra, e mais adiante no trajeto percorrido com a mulher, o escritor declara que cópias são importantes, porque reconduzem ao original, e dessa forma atestam o seu valor. Mas deixa claro que essa abordagem não se dá somente em arte, mas se estende ao comportamento humano.

Não chega a ser uma discussão nova no cinema (mas há algo nesse mundo que ainda seja novo ou tudo está por ser reescrito ou refeito?). A questão permeia, por exemplo, a carreira inteira de Orson Welles, especialmente em seu filme final e testamento, Verdades e Mentiras (F for Fake, 1974), onde tomando como exemplo uma pintura, questiona sobre qual a distinção entre o pintor verdadeiro e o falsário, para responder: “nenhuma”, desde que a falsificação seja boa, concluindo que um falsário de talento é um artista tão verdadeiro quanto o original. O crítico Inácio Araújo, em um texto antigo sobre Welles, completa dizendo que o cineasta era “alguém que tomava a farsa como questão e a arte como uma espécie de farsa”. O que nos é dado a ver em Cópia Fiel não é outra coisa senão essa crença revelada em cada gesto, cada movimento, em todas as nuances e nas excelentes atuações dos atores centrais, tão naturais e à vontade em cena, como numa empatia e autenticidade feitas sem a consciência de que havia uma câmera filmando-os, com Kiarostami conseguindo, quase como num milagre, fazer-se oculto quando, no entanto, sabemos que sua mão está ali, o tempo todo, numa assinatura tão maior quanto for sua discrição, ou sua aparência de invisibilidade.  

A entrada de elementos externos que redirecionam a trama dará lugar à materialização dos conceitos debatidos no começo do filme (daqui em diante ocorrem spoilers no texto, então recomendo que os leitores que não viram o filme e se incomodam em saber de antemão muito sobre o mesmo não sigam em frente). James e Elle estão num local antes deserto, mas que de repente se torna repleto de gente. Passando por um café, encontram outro casal que o tomam como marido e mulher, e passam a encenar uma série de variações de relações conjugais, alterando a percepção que o espectador carregava até então sobre os personagens. Não uma reviravolta em cima de um segredo, de truques e trapaças, no intuito de surpreender o público, como em algum suspense hollywoodiano, mas sim um mistério que se esconde e impede sua revelação, e também a vontade de problematizar o filme por inteiro em volta da transformação de uma mentira em uma verdade na tela.

Assim, o filme vai desenhando e apresentando diante de nossos olhos sua própria estrutura. Ao recapitularmos mentalmente o que víamos até então, ou mesmo revendo-o mais tarde (e Cópia Fiel é um filme que pede que se retorne a ele mais vezes), se torna mais sugestivo que James e Elle podem sim ser um casal de verdade cuja distância amorosa que mantinham um do outro impedia o público de enxergar ali um relacionamento. Os atores hesitam, tremem, se tornam nervosos, se intimidam, tudo contribui para levar ao extremo da intensidade dramática e conceitual a proposta do filme, ameaçando os limites entre a verdade suposta do fingimento e a simulação de verdades escondidas. Quanto mais emocionante Cópia Fiel se torna mais exato o seu jogo conceitual se revela.

Cópia Fiel se torna puro melodrama e já não importa se os personagens de Juliette Binoche e seu parceiro em cena fingem ou não ser um casal; o que de uma forma ou outra enxergamos ali é a crise entre um homem e uma mulher expressa com grande vigor na tela, e o material humano se tornando o eixo dramático do filme. Trata-se de (mais) uma obra singular de Abbas Kiarostami. É como se depois de duas décadas de seus filmes serem descobertos na Europa, quando então passou a ser comparado a Roberto Rosellini, o cineasta finalmente realizasse o seu Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954). E faz uma cópia fiel de si mesmo (do seu cinema), evoca outros mestres, e por fim, irrompe belo e original.

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