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Críticas

Cineplayers

Versão da Disney para o clássico de Victor Hugo é um deslumbrante musical da Broadway que arde na fogueira do politicamente correto.

8,5

O estúdio de cinema Walt Disney não tinha do que se queixar em 1996: O Rei Leão (The Lion King, 1994) tinha faturado mais de 400 milhões de dólares só nos Estados Unidos e se tornado o maior sucesso de bilheteria de um desenho animado até então. Desde A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 1989), o estúdio parecia ter reencontrado seu caminho e acumulava um sucesso atrás do outro, a ponto de A Bela e a Fera (Beauty and the Beast, 1991), outro grande sucesso, ter sido indicado ao Oscar de melhor filme. Desenho animado tinha deixado de ser coisa de criança, tornado diversão de adulto, atraía grandes bilheterias e a marca Walt Disney estava de volta ao mesmo nível alcançado quando então o próprio Walt Disney coordenava a equipe de desenhistas de seus filmes antológicos.

Foi com um espírito de grande liberdade artística e muita ambição que o estúdio lançou um de seus fracassos, O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame, 1996). É um desses produtos que só são feitos em grandes estúdios quando há dinheiro sobrando. Trata-se, na verdade, de um musical da Broadway colorizado e em película, tamanha a sofisticação dos desenhos, das músicas, do libreto, dos arranjos. Não só ousaram mexer num clássico da literatura, o romance Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, como do cinema: o filme homônimo dirigido em 1939 por William Dieterle, com Charles Laughton e Maureen O'Hara nos papéis principais. Mesmo a temática era inovadora: a Disney faria crítica social num desenho animado.

Dentre os motivos que levaram os produtores a bancar uma nova versão para as telas é que, na França direista e racista de Jean-Marie Le Pen, imigrantes estavam se refugiando nas igrejas para evitar a deportação, uma vez que o governo francês ordenara uma caça aos ilegais (e testes com a bomba-atômica, entre outros atos proto-fascistas). Foi o que fez a cigana Esmeralda em pleno século 15 no romance do escritor francês: para evitar ser presa, meteu-se na catedral de Notre-Dame – as igrejas eram então consideradas como as embaixadas hoje em dia, onde refugiados políticos podem pedir asilo. A História, ao se repetir, atualizou o romance subitamente.

O filme é uma sucessão de luxuosos números musicais com a trilha de Alan Menken, nenhum deles mais impactante que Hellfire, no qual o vilão, Claude Frollo, ministro da Justiça, sozinho em casa, é tentado pelas imagens da cigana, que sai da fogueira para lhe seduzir. A cena foi censurada e tiveram de botar roupas na figura da cigana para diminuir o teor erótico. Mais: no dia seguinte, indisposto, como que cansado de uma fastidiosa masturbação, o vilão se queixa da noite mal dormida. Frollo havia cheirado os cabelos de Esmeralda no dia anterior e, queimando-se de desejo, ardendo de volúpia, corroído pela concupiscência, canta até a exaustão, prometendo persegui-la nem que fosse necessário destruir toda Paris.

Like fire
Hellfire
This fire in my skin
This burning
Desire
Is turning me into sin

Menken e seu letrista, Stephen Schwartz, criaram números ligeiros e alegres para o Corcunda (iluminando-o e humanizando-o), mas para as demais personagens canções são sombrios cantos gregorianos adaptados, além de Dias de Ira e do Réquiem, de Mozart, com letras realmente impressionantes - econômicas, de frases curtas, diretas e objetivas. “Quem é o monstro, quem é homem”, entoam as gárgulas amigas do Quasímodo, o corcunda, comparando-o ao despótico Frollo. Num dos mais belos momentos do filme, Esmeralda (voz da Demi Moore), encalacrada na “magnífica prisão” - como o vilão descreve a catedraal -, diz que na igreja ela vê uma demonstração de piedade que ela nunca encontrou na terra. Percorre a catedral iluminada de forma esplêndida por velas e vitrais góticos e canta para uma santa que ela não conhece God Help the Outcasts:

 I shouldn't speak to you
Still I see Your face and wonder
'Were You once an outcast too?'

Victor Hugo era um homem religioso, mas recusava a arrogância e prepotência da Igreja Católica. Seu livro não é uma crítica à religião, longe disso, mas uma análise interna, o que lhe dá um caráter ainda mais incisivo, da impertinência do despotismo religioso que representava a catedral, construída ao longo de 150 anos e que ocupava um terço do total da ilha que deu origem a Paris. Esse clima de opressão e terror da Idade Média está em todo o filme, algumas vezes em detalhes sinistros, como na reconstituição das masmorras parisienses, das catacumbas e, é claro, dos desvãos de Notre-Dame. Mas o filme injeta na narrativa um ponto de vista bem norte-americano: Esmeralda se identifica com Quasímodo e luta para trazê-lo para fora, conversa com ele sobre sua deformidade, enfim, tenta integrá-lo à sociedade, bem diferente do livro original, quando o Corcunda se suicida, enterrando-se junto com o cadáver da cigana, no mesmo caixão da amada.

Quasímodo, na verdade, é um adolescente nesse desenho animado. Tem vergonha do próprio corpo, vive sozinho encafuado no seu quarto, tem amigos imaginários e vai sofrer a primeira desilusão amorosa. As gárgulas que “conversam” com ele pouco ajudam, empurrando-o para toda sorte de atitudes mesquinhas e erros estapafúrdios. Era profundamente convencido de que deveria ficar escondido nos sinos da igreja, pois ninguém jamais o aceitaria. Nada a ver com o Corcunda de Hugo: a Igreja mantinha esses deformados perto de si para aterrorizar os fiéis, dizendo que mostruosidades como aquelas eram frutos de incestos e danações terrenas, ou seja, tinham uma função de controle social, por isso eram tão odiados, temidos e ridicularizados se saíssem nas ruas.

As mudanças na trama original são às vezes duras de engolir, à primeira vista: há um excesso de boas intenções. No entanto, são discussões pertinentes, inteligentes e dão atualidade ao enredo, mas o filme se perde no terço final. A derrocada moral e a discussão ética dão lugar a lugares-comuns do politicamente correto; e as carnificinas e perseguições, o obscurantismo, a intolerância (como o banho de óleo fervente que Quasímodo dá no exército de Frollo) são substituídos por puritanas cenas de amor e beijos castos. É anti-catártico e talvez explique a falta de conclusão que o filme passa.

Filmes da Pixar e da DreamWorks desenvolveram uma linguagem própria para os desenhos animados muitas vezes superior aos equivalentes de carne e osso, com consistência dos roteiros e densidade das personagens, sejam peixes amnésicos ou monstros que atacam os sonhos de criancinhas. O Corcunda de Notre Dame não tem essa qualidade toda ainda: híbrido de cinema e Broadway, sua força está nas canções e na encenação, na violência psicológica e no deslumbrante visual gótico criado para o filme. Exemplo dessa sofisticação: as roupas de Esmeralda combinam tanto com o ambiente feudal exterior, como são apropriadas uma vez dentro da Igreja, pois as cores e sombras bruxuleantes dos vitrais se amalgama aos trapos da cigana. A famosa "passagem tonal" tão cara a alguns cineastas-autores. 

The Hunchback of Notre Dame pagou o preço do politicamente correto e fracassou nas bilhterias. Os artistas que o fizeram estavam cobertos de boas intenções, as mesmas que povoam o inferno – e é nessa fogueira que o filme arde. Se Victor Hugo matou todo mundo e publicou seu ódio à catedral, o desenho animado manteve todos vivos, felizes e readaptados à sociedade, além de ter um relacionamento positivo com a catedral em si, a construção, o edifício. Enfim: não é mais necessário sofrimento pessoal de ninguém frente a um ato de injustiça social. Nossa sociedade mudou, e o filme procura refletir isso. Pode parecer menos interessante e menos animador enquanto arte, mas tem as suas vantagens por conta das pequenas vitórias.

Comentários (10)

Cássio Bruno de Araujo Rocha | quarta-feira, 01 de Agosto de 2012 - 08:36

Crítica bacana, mas com erros históricos. O mais evidente é que Jean-marie Le Pen, líder da extrema-direita francesa, nunca foi, até onde eu sei e consegui pesquisar rapidamente, primeiro-ministro da França (ainda bem!).
Concordo com muitas das ideias da crítica, e acrescentaria que os pontos fracos do filme são resultado da necessária adaptação de uma obra vinda de um contexto cultural diverso à ideologia liberal do american way of life... pra mim é o mesmo pecado original que impede qualquer estúdio dos EUA de fazer um filme digno a partir da mitologia grega (mas esse é outro assunto)...

Pra constar, adoro o Corcunda e tb acho a música do Frollo a melhor do filme e bastante erótica.

Conde Fouá Anderaos | quarta-feira, 01 de Agosto de 2012 - 12:33

Meu pensar é díspare daquele do colega. Acho que ao contrário dever-se-ia ter sido mais fiel ao romance ( Pode parecer menos interessante e menos animador enquanto arte, mas tem as suas vantagens por conta das pequenas vitórias). E realmente o carniceiro nunca foi primeiro ministro. E espero que sua descendente talvez nunca o seja. Para constar: Victor Hugo era um espiritualista liberal como a época o foi victor Cousin (filósofo oficial da França a época).
A crítica é boa. São visões distintas apenas. Talvez por amar demais o romance. A versão de 1939 não é fiel, mas bem mais resolvida cinematograficamente.

Renan Fernandes | segunda-feira, 08 de Julho de 2013 - 13:27

Brilhante crítica...deu até vontade rever pra observar esses detalhes.

Rafael Ribeiro da Silva Ferreira | quarta-feira, 06 de Maio de 2015 - 10:43

Sempre gostei do filme, desde criança. Mas só de alguns anos para cá que tornou-se de fato um dos meus preferidos trabalhos de animação. Mais denso e sombrio que qualquer outra animação disney que assisti, o filme é rico em suas ilustrações e canções. Uma obra de arte dos estúdios Disney.

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