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Críticas

Cineplayers

Um filme que dividiu críticos, ainda assim vale a pena ser assistido por quem adora o cinema.

7,5

Formulaico: um jargão dos mais manjados na crítica cinematográfica, definindo filmes realizados por um modus operandi igualmente batido e sem criatividade onde apenas mudam-se os nomes em histórias já 1000 vezes antes feitas e que, por mais desgastadas que pareçam estar, sempre aparece alguém pronto a refazê-las. É sinônimo de dinheiro fácil, os estúdios adoram e prontamente liberam verba para a produção, sabendo que o que vende o filme não são idéias, mas propaganda. Não que eles não tenham um fundo de razão, mas por vezes aparecem, contrariando todas as regras do mundo executivo, produções de baixo custo e completamente experimentais que quebram o lobby dos blockbusters e são sucessos tanto de crítica quando público, revelando junto com eles cineastas que estavam fadados aos guetos e transformando-os celebridades.

Apesar de já ter uma extensa carreira no cinema, incluindo filmes magníficos como A Zed and Two Noughts e Drowning by Numbers, o sucesso e aclamação veio há tempo com a flamboyant poesia do pânico de O Cozinheiro... A história é tão simples quanto o título a elucida; temos um criminoso rude e violento que visita diariamente o restaurante que ajuda a bancar (de seu chef favorito), com sua mulher Georgina a qual, acostumada às grosserias e bizarrices de seu marido, arruma um sofisticado colecionador de livros como amante, e se encontram às escondidas nas idas e vindas no restaurante, com o cozinheiro acobertando o caso. Seguindo o mesmo exemplo de Um Condenado à Morte Escapou de Bresson, a história aqui – um tanto banal e auto-explicativa – é a menor das preocupações do filme; Greenaway sempre fora um cineasta das sensações, priorizando a forma sobre o conteúdo, chegando inclusive a dizer uma vez que quem quisesse contar histórias, que escrevesse um livro. O cinema é o domínio das imagens, dos sons e, no caso do filme em questão, todos os outros sentidos.

Seguindo uma veia mais artesanal de Godard, este filme é um experimento em vários sentidos, a começar pelo que mais chama atenção, a experiência estética. Dono de uma sensualidade ímpar, mesmo nos momentos mais grotescos (e não são poucos), o filme opera num nível de delicadeza e maestria teatral impecável, obedecendo à sua lógica interna; cenários orquestrados, um figurino que muda de cor de acordo com o ambiente que adentra, a própria encenação das personagens, perfeitamente ritmada com a forte melodia de fundo zanzando por toaletes, cozinhas e salões, tudo muito grandioso e registrado por uma steadycam paralela à ação, funcionando como uma subjetiva do público, que assiste aqui à uma ópera. A reação, por vezes exagerada das personagens, nada mais reflete que o caráter absurdo da situação, que cresce descontroladamente em um tour de force cíclico entre provocações e mentiras, até o chocante ato final.

Se, por um lado, o filme mostra toda a beleza angustiante em meio a tanto caos, como o pequeno copeiro andrógino entoando a mesma canção fora de tom ou o aspecto refinado da grande arte no salão principal, das pinturas antigas, música clássica e culinária francesa, também mostra o lado obscuro que sustenta tamanho luxo, cujo frágil limite se resume à entrada da cozinha, onde todos deixam sua pose social e abraçam seus instintos. A educada Georgina, que cuidadosamente flerta com seu amante de sua mesa cativa enquanto este lê seus livros, transa loucamente na despensa e no frigorífero entre cabeças de porcos penduradas, embalada no ritmo da orgia gastronômica do cozinheiro, enquanto o criminoso Albert Spica (em maravilhosa atuação de Micheal Gambon), já naturalmente desbocado e agressivo, transforma-se numa besta sádica e enfurecida, que só piora à medida em que se afasta da copa para o beco nos fundos do restaurante, um lugar imundo rondado por vira-latas que serve de palco para as piores torturas e atrocidades (não por acaso a cena inicial se dá lá). Porém, este equilíbrio é quebrado quando Albert, tomado pelo desejo de vingança, despeja sua brutalidade num local indigno de tal, uma extensa biblioteca que supostamente deveria emanar o melhor do ser humano com sua aura mística do conhecimento milenar e artístico; isto impulsiona Georgina a retornar na mesma moeda, invadindo o aposento de serenidade de Albert durante o gran finale.

Deixando os críticos na época divididos, alguns o considerando por demais bizarro e perturbador, outros enaltecendo suas inúmeras qualidades artísticas, sendo visto como uma obra matematicamente concebida, uma crítica à política Thatcher ou uma história vazia sobre quatro pessoas, não diria que é um filme para poucos mas certamente muitos o irão odiar; um filme que personifica bem o ditado “falem bem, falem mal, mas falem de mim”. Ainda assim, é imprescindível ser visto por todos que tenham algum interesse em cinema e debatido à exaustão, mesmo que seja apenas como desculpa para iniciar uma conversa de bar.

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