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Críticas

Cineplayers

Corpos e performances.

8,5

Alguns filmes especiais guardam o poder de explicar por si só e naturalmente o gênero e a categoria aos quais pertencem. Crazy Horse (idem, 2011) é dessa espécie de trabalho cinematográfico que ilumina certas questões, ainda que um tanto genéricas e abrangentes, permitindo inúmeras possibilidades, no caso envolvendo o que conhecemos como documentário. Diante dessa obra mais recente do veterano Frederick Wiseman (especialista no gênero), por vezes nos parece de pouca relevância as diferenças entre a ideia de ficção e documentário que carregamos. O diretor é, sim, movido sobretudo por um impulso documental, porém muito longe do conceito jornalístico da ditadura da informação e dos depoimentos (embora esses existam, sim, em seu filme, servindo como pausas e ilustração do mundo que espelham), como encontramos com frequência no cinema, inclusive entre seus melhores exemplos do gênero.

Em Crazy Horse a câmera do cineasta visita um clube de strip-tease parisiense de mesmo nome, apreendendo o mundo retratado muito mais do que poderia nos ser contado sobre ele. O seu interesse é explicar e destrinchar como visão artística e comportamento o recinto erótico da casa noturna, pelo grande número de experiências que transporta, todo um coletivo pelo qual a câmera parece especialmente enamorada, o que se estende ao olhar do espectador, no livre espaço de experimento estético que o filme representa. Crazy Horse não deixa de ser sobre voyeurismo, entre o olhar desse espectador e o objeto de prazer, mas sobretudo se valida como manifestação artística, com as garotas do lugar desempenhando ou simplesmente ensaiando velhos e novos números de dança e exibição, além de eventuais testes e audições.

O filme trabalha num curto provocado pelo encontro entre vulgaridade e sofisticação, e muitos de seus melhores momentos se dão como peças de um musical. Possivelmente nenhum outro musical nos últimos anos possui números tão perfeitos em sua orquestração, para muito além de sua sensualidade quase selvagem, pois eles desvelam as camadas de suas diversas superfícies e as aparências do mundo retratado como instituição (Wiseman, desde seus primeiros títulos na década de 60, gosta de trabalhar com a ideia de instituição), e suscitam, desse encontro entre o vulgar e o sofisticado, em torno de uma matéria existente, algo de maravilhoso. Diante do universo no qual entrou, Wiseman passa a conhecer profundamente os seus funcionamentos, com uma manipulação profunda dos procedimentos próprios do cinema

É o caso não apenas de uma visão e sensibilidade extremas, mas de um fascínio absoluto pela alteridade, nas metamorfoses das garotas que se travestem e se transformam pelo uso constante de diferentes figurinos, maquiagens e perucas (e dos corpos em paralelos a manequins e estátuas) − Crazy Horse é também um filme sobre performances −, e pela alteridade de luz e cores, que resultam em efeitos siderantes, muito longe de uma cafonice geralmente associada aos Baz Luhrmann da vida, e próxima da mais física e concreta matéria (o movimento sensual e ritmado dos corpos, e a visão das epidermes banhada em luz, reproduzidos pela coreografia e os esforços das dançarinas através de repetições diversas ou números novos − elas mesmas, as dançarinas, corpos de luz semitragados na escuridão, nesse filme que por vezes se apresenta como um teatro de sombras), até o ponto do abstrato e da plenitude como cinema e sensação. Abstrato equivalente à essência da música como arte em si mesma, o que faz que, com o seu impressionante trabalho de som e de trilha (que inclui do gótico de Danny Elfman a Heitor Villa-Lobos, cujo trecho das Bachianas serve de fundo a um dos mais belos momentos no final), Crazy Horse se complete como peça de grande resistência musical e cinematográfica.

E o trabalho, evidentemente Crazy Horse  se impõe como um grande filme sobre o trabalho, e o reflexo dentro da instituição retratada em comparação como as coisas ocorrem em sociedade. Num dos depoimentos, um profissional do clube noturno conta que as mulheres possuem a capacidade, utilizando aquilo de que a natureza as dotou, de utilizar artifícios, truques e estratégias, para se transformarem em algo completamente diferente. O que não corresponde propriamente à beleza com que nasceram, pois o entrevistado complementa que as mais perfeitas nesse sentido nem sempre são as mais bonitas no palco, porque confiam demais nos atributos físicos, que lhes dá uma segurança que as impede de ir mais longe, enquanto que as que possuíam mais complexos desenvolvem estratégias e personalidades que as ajudam a triunfar. Desse embate e exibição entre umas e outras das mulheres é que é feito, afinal, o mundo em que vivemos, e este filme tão grande sobre trabalho e espetáculo, beleza e erotismo, que se chama Crazy Horse.

Comentários (3)

Lucas do Carmo | sábado, 29 de Junho de 2013 - 13:26

Muito bom o texto, vou ter que conferir essa bagaça.

Ma Rodrigues Barbosa | segunda-feira, 01 de Julho de 2013 - 23:04

Excelente texto Vladimir,analisaste com atenção cirúrgica a película. 😉

Thiago Lopez | quarta-feira, 03 de Julho de 2013 - 17:17

Belo texto! Uma pena que a distribuidora Petrini Filmes ainda não tenha conseguido lançar o filme no circuito pequeno e sempre congestionado do Rio de Janeiro. Só aumenta ainda mais minha ansiedade, espero que essa questão seja resolvida logo e o longa ganhe uma data de lançamento por aqui.

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