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Críticas

Cineplayers

A ameaça interior.

8,0
Em Creepy (Kurîpî: Itsuwari no Rinjin, 2016), o diretor Kiyoshi Kurosawa retorna ao terror após muitos anos afastado do gênero que o consagrou, e com isso retoma a mesma lógica que regia o universo de seu filme mais aclamado, Cure (Kyua, 1997). Há um paralelo muito forte entre os dois trabalhos, mas o brilho do novo filme se encontra justamente nos pontos divergentes nesse meio. Por exemplo, se Cure seguia por um caminho de crescente confusão conforme o mistério se desenvolvia, em Creepy o diretor segue pela contramão e aposta numa fórmula um tanto mais comum – porém muito original em suas mãos – de desvendar sem nenhum receio as raízes e as causas de todo o horror. 

Na trama, o ex-detetive Takakura se muda com sua esposa Yasuko para uma nova casa, como parte do processo de superação após um incidente traumático no passado com a fuga de um serial killer. Agora professor universitário de psicologia criminal, ele ainda se vê interessado num antigo caso não solucionado de uma família que desapareceu sem deixar rastros, sobrando apenas a filha mais nova, Saki, que nunca soube dizer ao certo o que aconteceu. Ao mesmo tempo, ele teme e desconfia das atitudes de seu novo vizinho, um homem estranho e de hábitos escusos, por quem sua esposa desenvolve um inexplicável fascínio. 

Diferente de Cure, em que a força motora estava na escassez de informações ou pistas conclusivas sobre a investigação, Kurosawa segue por um caminho parecido com os policiais americanos que precisam de novas pistas, revelações e reviravoltas como combustível para alimentar sua narrativa. Contudo, logo de cara ele já deixa claro que não se trata de um típico thriller americano, quando durante uma aula Takakura explica a seus alunos sobre o caso real de um serial killer dos Estados Unidos que raptou, estuprou e depois caçou com um rifle em uma floresta um grupo de prostitutas. “Tudo é maior nos Estados Unidos”, decreta o professor, quase que como se estivesse conversando com nós, o público, e se desafiando a algo muito mais sombrio e profundo do que estamos acostumados a ver no cinema americano do gênero. 

A partir disso, Kurosawa começa a concretizar suas ameaças a partir do nada ou simplesmente do cotidiano. Se a princípio parece paranoia ou exagero desconfiar do vizinho esquisito, logo nos deparamos com a possibilidade horrenda de esse mesmo vizinho estar relacionado com o mistério da família desaparecida. Da mesma forma, o simples gesto de Yasuko de tentar confraternizar com a nova vizinhança levando chocolates de casa em casa, logo ganha um contorno assustador quando a câmera do diretor se foca no vento incessante que parece anunciar a chegada de algum perigo. Embora muito discreto em seus movimentos, Kurosawa tem uma câmera virtuosa e empregada para causar constantes desconfortos, dos mais sutis até os mais horripilantes. Cruel, logo ela se vira para o próprio casal central e acusa uma ameaça interna, um mal até então insuspeito. Nesse ponto, Creepy se encontra com Cure e passa a discorrer sobre os males interiores, os fantasmas das relações humanas, a solidão da vida nas grandes metrópoles, os ruídos na comunicação – as bombas-relógio que, cedo ou tarde, explodem e expelem o que há de mais nefasto e sombrio na alma humana. 

Por mais que caia num espiral cada vez mais surtado e bizarro conforme se desenrola, Creepy é um filme ainda bastante narrativo, lógico e funcional dentro de um roteiro bastante concessivo e redondo para os padrões de Kurosawa, o que acaba deixando menos espaço do que o de costume para variadas interpretações sobre a obra. Ainda assim, revela um diretor ainda muito afiado no gênero e capaz de se reinventar mesmo dentro de seu próprio universo. Incisivo, volta a colocar uma lupa sobre algumas feridas da sociedade moderna e revela sem dó que a raiz da maioria delas se encontra dentro do coração do próprio homem. 

Comentários (1)

Declieux Crispim | segunda-feira, 21 de Novembro de 2016 - 13:31

Baita crítica, Heitor. Kurosawa é mestre.

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