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Críticas

Cineplayers

Sociedade e indivíduo.

7,5

Em A Criada (La Nana, 2009), filme dedicado às duas empregadas domésticas que trabalhavam em sua casa, Sebastián Silva funde dois filmes em um. O primeiro, um drama de repetição maníaca que descamba tanto em certa carga de suspense quanto uma de humor negro; o outro, um drama sensível em que alguém tem de aprender a finalmente fazer contato com o resto do mundo.

Raquel trabalha como doméstica para a família Valdes há 23 anos – há tanto tempo que acabou criando junto da família todos os seus filhos, com devoção feroz a seus donos. A família pouco vê como sua saúde vai se degradando, aos poucos, devido ao uso excessivo de cloro para limpar a casa, e acabam tendo a ideia de contrar mais uma pessoa para ajudar. Nesse momento, Raquel descamba em psicose maníaca, constantemente pregando peças e tornando a vida das domésticas auxiliares tão infernais que elas logo pedem demissão.

O que poderia configurar Raquel como a vilã do filme tem um efeito contrário: é justamente nesse momento que surge a cumplicidade entre personagem e espectador que, sem explicar muito além do óbvio – ela estar com a família há tanto tempo, e tão longe de sua família de berço, que tornou-se “mais ou menos família”, considerando as crianças “mais ou menos” seus filhos, e ainda assim ter que chocar-se com a realidade, a todo instante, ser lembrada pela filha do meio que ela não é família, e sim uma empregada, e ser tratada pela mãe de sua patroa, Pilar, como algo descartável e substituível. É dessa ambiguidade que surge o impacto do drama humano que no primeiro ato – talvez não desnecessário, mas cíclico e até repetitivo em sua estrutura – deságua no segundo, onde é contratada Lucy, uma empregada mais jovem, bem resolvida e alegre, que é a primeira a pisar naquela casa a perceber o estado emocional fragilizado da protagonista e ajudar ela a se levantar, fazer amigos, ter iniciativa, dialogar.

Tal transição é tão bruta quanto seu filme, cuja câmera gruda no corpo de Catalina Saavedra e a segue em toda a sua intimidade, no banho, no quarto de empregada – que fica praticamente em uma “casa” diferente da do resto da mansão – e do campo de batalha que a mesma mansão é transformada. Os cortes são secos e ríspidos e a dramaturgia escolhe - entre a repetição insana e a tentativa de redenção – focar nos momentos íntimos da protagonista, a todo momento vemos seu rosto precocemente envelhecido, seu corpo nu com aspecto já desgastado, a atuação cujo olhar profundo e com olheiras eliminam a necessidade de biografias pregressas e didatismo nos diálogos. Por trás da empregada, há um ser vivo sem identidade e desesperado por encontrar uma, que tal como o personagem-título do documentário Santiago (idem, 2007), não sabe que tipo de relação exata mantém com seus patrões. A subordinção social choca-se com o envolvimento afetivo, e câmera que segue, tal como no filme de Moreira Salles, é incerta, deslocando-se, tremendo, tornada tão intensa quanto o aspecto físico que Saavedra imprime sua personagem em seus momentos mais críticos.

A Criada, apresentando essa questão multigênero, mostra a diversidade da possibilidade de abordagem de um mesmo tema, repensando um fator social que é tornado íntimo através do espaço (o quarto e banheiro de empregada separada do resto através da cozinha), do tempo (as elipses pouco explicativas, o foco dramatúrgico na psiquse da sua personagem) e na forma (as câmeras, a atuação, a fúria de inspiração independente em criar um filme visualmente agressivo) para que só então Raquel possa reencontrar o mundo através de Lucy, assumir seu lugar e transgredir para não mais mera empregada, mas alguém que se tornou com o tempo tão fundamental para aquela casa; é só perceber como seus protagonistas são igualmente irritadiços quando Raquel é igualmente irritadiça.

Por trás de tudo, ao invés de discrso político, há uma constatação sobre os tempos confusos que vivemos nessas relações trabalhistas (onde a barreira entre abuso, afeto, direitos e subordinação só agora começa a ser pensada). A transgressão de Raquel é ser reconhecida por seus patrões enquanto ser humano, enquanto pessoa próxima, com direitos inalienáveis. Em uma relação trabalhista tão próxima quanto patrão-doméstica, a linha turva ainda dá margem para todo o tipo de abuso e é nítido o esforço de Silva em tentar se comunicar com todas as “Raquéis” do mundo de enfrentar seus patrões não para que eles o troquem como engrenagem falhada, mas antes uma tentativa de estabelecer um diálogo. E A Criada é esse diálogo confuso, disforme, agressivo e desesperado por compreensão, que mais reflete do que busca respostas e que em seu final algo “feel good”, ainda não sabe de tudo, ainda sabe que há problemas a resolver e que um filme, como dispositivo tão próximo de comunicação com a massa, é uma dessas muitas iniciativas.

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