David Cronenberg abre as portas dos anos 2020 mais uma vez olhando ao futuro. Nada de muito novo aos que acompanham a filmografia do autor. Há vários pontos de acordo entre os espectadores mais assíduos, um deles é o fato de seu cinema estar situado num tempo distante ao espectador, e seus personagens apresentarem-se numa permanente busca de inovação dentro desse próprio tempo.
Em Crimes do Futuro (Crimes of the future, 2022) essa premissa é bastante evidente. O mundo anda em total declínio biológico, e os humanos sentem na pele os efeitos de seu próprio descaso com o meio ambiente, uma das principais consequências é o fato de os seres humanos passarem a desenvolver – ou melhor retroceder em sua capacidade sensitiva – a dor parece cada vez mais escassa. Essa nova circunstância permite que cirurgias possam ser executadas em público, numa espécie de busca experimental deste limite sensorial.
Não sabemos muito bem onde, nem exatamente quando, mas a partir dessa necessidade social somos apresentados a Saul (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux), artistas que exploram os limites do corpo a partir de performances públicas de cirurgias de órgãos internos auxiliadas por maquinas que poderiam estar muito bem incluídas no cenário inseto-máquina de Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991).
A partir da relação entre os dois e da representação medico-artística, conseguimos inferir sobre a crise que vive o ser humano. Os ideais almejados estão sempre relacionados a algo que possa estar acoplado ao tecido tecnológico; o plástico. O sintético é a referência, os sentimentos que parecem distantes, e o momento de maior eloquência, ou como os próprios personagens definem como epifania, são as performances cirúrgicas numa nova maneira de relacionar-se sexualmente. Enquanto um artista performa a cirurgia, o outro retribui com o seu corpo, portanto uma simbiose divina entre prazer e dor, em prol da arte.
Cronenberg reconhecido pelo seu forte referencial literário, tem como um de seus grandes trunfos a capacidade de transformar o fantástico da Literatura em imagem, sem que isto seja obrigatoriamente relacionado a uma adaptação, como é o caso do já citado Naked Lunch. A construção da mise-en-scène cronenberguiana leva o público a uma imersão audiovisual, ainda que por diversas vezes inspirada em suas leituras, especialmente Franz Kafka, haja visto o cultuado A Mosca (The Fly, 1986), por exemplo. Mesmo que durante toda a sua carreira, já tenha se envolvido em diversas polemicas pelo tom grotesco, e por tentar estabelecer um novo limite no que diz respeito ao que se pode assistir numa película, nunca o absurdo é barato, ou preciosista. O fabuloso em sua obra vai sempre alfinetar o pior da humanidade, suas obsessões, insistências e inevitável fracasso.
Neste último trabalho, nota-se um uso forte de sombras e cores escuras que juntas formam cenários que se aproximam da forma de casulos, como a estranha e inesquecível cama de Saul. Além disso, a potência da atuação dos protagonistas, completamente imersos nesse futuro distópico, rendem uma sensação de total pertencimento àquele espaço, e por conseguinte, um desejo de superá-lo.
Interessante refletir sobre o fato de que os primeiros filmes do cineasta parecem abrir uma grande lacuna do que se verá em seu futuro. Sempre mostrou-se fascinado por máquinas e pela possibilidade de problematizar mundos onde elas estivessem abraçadas aos humanos, da mesma forma como observamos sua fascinação com os insetos, e em meio a tudo isto, há um homem que conhece a ciência, e que se ente capaz de avançar sobre os limites da humanidade.
Crimes do Futuro diferentemente de um Cronenberg que parecia se alinhar com o cinema norte-americano, como o vimos desde Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996) até Mapas para as Estrelas (Maps to the Stars, 2014) volta a sua origem, a um cinema canadense, cujo é pedra fundadora, e bizarramente, isto quer dizer também olhar ao futuro.
Chegar a 2022, com o mesmo título de seu segundo filme em 1970 – Crimes do Futuro (Crimes of the future, 1970) –, e conseguir desenhar uma obra que é capaz de propor uma retrospectiva á “doideira” de seus filmes, e ao mesmo tempo também é capaz de construir um cinema de choque ao nosso próprio tempo é inegavelmente marcante.
Maioria do hype que vi desse filme foi em torno da atuação da Kristen Stewart.