Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

É um bom road movie, é um bom stooner movie, é um bom bro movie, mas não tem forças para ir muito além disso.

7,0

Um pouco do que dá sentido a Crystal Fairy vem do mito da estrada construído pelo cinema ao longo das décadas: estabelece-se a viagem como ponto de impacto na descoberta individual de alguém – a jornada da viagem é ao mesmo tempo a jornada da autodescoberta.

O filme do diretor chileno Sebastián Silva parece se enquadrar numa corrente recente do cinema americano que eu defino como reconsiderações narrativas – filmes cujas histórias parecem embaralhar-se com conceitos oriundos de aulas em Escrita Criativa, intrinsecamente ligadas a aspectos sociais urbanos & contemporâneos.

É o caso de Tiny Furniture, de Lena Dunham, que chegou ao Brasil através do Netflix, ou de The Comedy, de Rick Alverson, amplamente reconhecido como um marco (ou futuro marco) de uma estética particular de cinema independente americano. São filmes profundamente estimulados por desprezo, confusão ou indiferença. Eles partem de figuras arquétipas das grandes metrópoles para desmantelar rancor, compaixão, sarcasmo... até a última vez que pesquisei, textos em português ainda eram bastante raros no cenário virtual, mas os blogs americanos expandem cada vez mais essa cultura.

Crystal Fairy parece trafegar por essa corrente porque nós (espectadores) estamos mais uma vez diante de um protagonista branco, jovem, americano, classe média, de personalidade autocentrada, prepotente e arrogante. Jamie (Michael Cera) é um turista no Chile, anda sempre ao lado de Champa (Juan Andrés Silva), seu colega de quarto-residente local, enquanto entra em uma festa da qual não parece se encaixar muito bem. Passa pelos corredores e pelas pessoas, citando livros, julgando, cagando e usando drogas. Se sente à vontade, alheio à própria alienação. Chapado, convida uma mulher hippie – a Crystal Fairy (Gaby Hoffman) - para acompanha-lo a uma viagem onde eles usarão mescalina no deserto.

Num primeiro momento, o que mais me agrada no filme são as pequenas inquietações – como uma pessoa percebe e reage a uma outra. Elas não se dão explicitamente, através de diálogos ou elipses como acontece em muitos casos cinematográficos, mas sutis, pequenas expressões e gestos, quase como se não tivessem sequer acontecido. Através desse vocabulário, existe um imenso incômodo ao longo de Crystal Fairy, pois Champa e seus irmãos (Pilo e Lel, interpretados por Agustín e José Miguel Silva respectivamente), embora esforçados em serem agradáveis e receptíveis ao estrangeiro, não são capazes de esconder completamente certo desconforto com sua presença. A isso soma-se o fato de que Jaime simplesmente é egocêntrico demais para dar um primeiro passo rumo a uma compreensão maior a respeito de como as pessoas em sua volta se relacionam com ele.

Ao final, também me agrada bastante a evocação de Corrida Sem Fim (Monte Hellman, 1972), pelo niilismo, pela supressão de desejos... A ideia de viagem de Sebastian Sílva é em parte descontruída do mito de jornada enquanto elemento transformador. A hipocrisia desse fenômeno de uma “subcultura” sendo apropriada pela classe privilegiada em uma egotrip vazia é escancarada pelo diretor, que se recusa prontamente a construir sentidos e transformações em seus dois principais personagens – os turistas americanos, Jamie e Crystal Fairy. Existe, porém, a construção de um outro sentido – cujos porta-vozes são os três irmãos chilenos, que se apropriam da viagem de uma maneira muito mais comunal e libertadora.

Após o fim, torna-se claro que o filme pretende falar muito mais a respeito de pessoas do que de pessoas usando drogas; a viagem de mescalina que dá mote à história é propositalmente subaproveitada, pois Silva explora mais os desdobramentos do que a viagem, literal e lisérgica, causam em seu privilegiado protagonista.

A cena chave para o que eu entendo do filme se dá na noite do dia em que os personagens consomem a droga. Ainda meio chapados, os quatro garotos ouvem a história torturante sobre o maior trauma na vida de Crystal Fairy, e então Jaime desata a chorar. Esse choro rebate forte em uma outra cena do filme onde Jaime nega ter medo de qualquer coisa (“apenas de tubarões”), obrigando o espectador a compreensão de que há medo em Jaime; há insegurança e desconforto bem fundo no âmago do branco classe média metropolitano – se há algo mais específico que isso, minha apreciação do filme se negou a perceber.

Crystal Fairy, embora posterior, não comporta a complexidade e o alcance que os filmes anteriormente citados alcançaram. Seu término é decepcionante, permeado por ausências ao invés de reflexões. Trabalha bem nos mais diversos níveis de apreciação – é um bom road movie, é um bom stooner movie, é um bom bro movie. Porém, não tem forças suficientes para ir muito além disso. Após descortinar a fragilidade de seu protagonista icônico (e abro um longo parênteses aqui para ressaltar que o protagonista é nada menos que Michael Cera, um verdadeiro totem do jovem hipster contemporâneo, a criança que se recusa a crescer mesmo diante de nossos olhos), Silva não parece mais ter vontade de ir para lugar algum, e realmente não vai; mas ele consegue sem dúvidas criar algo de decência considerável; um diretor para se ficar de olho.

Comentários (0)

Faça login para comentar.