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Críticas

Cineplayers

Uma comédia que mostra a capacidade do ator Roberto Begnini de ganhar o público. Um belo trabalho.

8,0

Jim Jarmusch deu as caras no cenário independente do cinema americano em 1983, com Estranhos no Paraíso, que se tornou altamente cultuado e lhe abriu as portas para seu próximo longa, a idiossincrática comédia Daunbailó. Apesar destes dois filmes se divergirem bastante em tom, ambos apresentam uma marca clássica de Jarmusch, que são personagens marginalizados.

A estória é sobre dois sujeitos que, ao caírem numa armação da polícia, vão dividir uma cela juntos na prisão. Jack é um cafetão de baixa categoria que se envolve erroenamente num esquema de corrupção de menores, enquanto Zack é um ex-radialista que, expulso de casa pela namorada, aceita um serviço de transporte de um carro, sem saber que tinha uma pessoa no porta-malas; dois seres que vivem nos limites da sociedade, longe dos ideais do sonho americano. Muito além do nome, os dois se parecem tanto no jeito de ser que imediatamente se odeiam, como se olhassem num espelho e vissem tudo que há de condenável na sociedade, e que os botou na cadeia, à princípio. O clima pesado se alastra durante dias a semanas na prisão, que é marcante no começo da projeção (que, aliás, retrata Nova Orleans da mesma maneira que os protagonistas, uma cidade fria, suja e escura, longe dos shows de jazz e clima de desfile de costume), até a chegada do terceiro companheiro de cela, o franzino italiano Roberto.

Roberto Benigni, em começo de carreira, já retrata desde lá o mesmo tipo de personagem que o consagraria anos mais tarde, e transforma Roberto num divisor de águas no filme. O tagarela e por vezes irritante italiano logo se transforma num ser que tanto Jack quanto Zack podem odiar mutuamente, mas sua simpatia aos poucos o aproxima dos dois. Sendo o único lá a realmente pagar por um crime (um homicídio que, à melhor maneira de Chaves, foi 'sem querer querendo'), Roberto adiciona um humor tão inconsequente e inocente que muda todos os rumos da projeção. Para começar, o cenário muda, já que ele arranja um jeito de fugir da prisão (uma fuga que nunca é mostrada, o que acaba tendo um resultado muito mais positivo que caso fosse inventado uma maneira mirabolante de escapar), e agora os três amigos - na definição de Roberto - estão à solta no meio de um enorme pântano, sempre a correr. Essa segunda parte do filme apresenta-se de uma maneira bem mais leve e descontraída, a fotografia fica mais clara, as cenas têm menor duração e o ritmo é mais acelerado.

Mas enganam-se eles achando que estão livres. Simplesmente mudaram de prisão (inclusive, a cabana em que eles passam a primeira noite é quase idêntica à antiga cela). Perdidos no meio do nada, sem saber para onde ir, a aliança dos três parece estar sempre à beira do colapso, e por diversas vezes chega a acabar, mas eles sempre voltam, centrados na figura de Roberto. Este, aliás, torna-se o personagem mais interessante do longa. Perdido numa cultura estranha, ele é um personagem em desespero, e o mais marginalizado de todos. Falando apenas o inglês mais básico, a língua é um constante problema, que o faz andar com um caderno de notas com piadinhas para tentar se socializar; durante uma discussão sobre gritos na prisão, ele lança um verso: "i scream, you scream, we all scream, for ice cream" ("eu grito, você grita, todos gritamos por sorvete") que, de tão ingênuo, acaba conquistando os dois companheiros, e vira uma espécie de hino-desabafo na cadeia. Pode-se notar também sua aparente tristeza e decepção quando é deixado para trás por Jack e Zack, e fica preso entre um rio (que não pode atravessar por não saber nadar) e os latidos de cães se aproximando (sua maior fobia), o que prova a escolha acertada de Benigni, que vai bem além de servir como um alívio cômico caricato. Ainda assim, ele prova ser o mais capaz dos três, já que sempre procura fazer todos ficarem unidos, e é ele quem acha a saída da cadeia, caça e assa comida à noite (numa cena hilária, totalmente improvisada pelo ator), e consegue um abrigo com uma italiana, que logo vira sua esposa (na verdade, esposa do Benigni na vida real, o que fica óbvio devido à afinidade dos dois na cena de dança). Jack e Zack não são propriamente atores - John Lurie, que interpreta Jack, já havia trabalhado em Estranhos no Paraíso - e sim compositores (eles que compõem a bela trilha sonora do filme), mas isto não atrapalha o trabalho deles, que retratam bem as divergências dos dois até o final do filme.

A fotografia de Robbie Müller (que fotografou Paris, Texas) também é um show à parte. Sempre trabalhando com um chiaroscuro de bastante contraste, dá o tom certo ao filme apenas mexendo nas variações de brilho (ao fim da projeção, está tudo tão claro que parece ter vazado luz no filme). Sempre trabalhando com um humor calmo, constituído de longas tomadas (herança de Jacques Tati, talvez?), é certamente o filme mais engraçado do diretor. Aliás, a brincadeira com o título original, 'Down by Law', que em português virou 'Daunbailó', entra bem no clima do filme, e parece ter sido criada de encomenda pelo próprio diretor. Estranhos no Paraíso pode até ser considerado um filme mais importante, de vanguarda, marco zero e tal, mas foi com Daunbailó que Jarmusch se firmou de vez no novo cinema independente americano.

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