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Críticas

Cineplayers

As histórias sem fim.

7,5
Logo na narração em off que abre De Onde eu Te Vejo (idem, 2016), Denise Fraga divaga sobre todas as possíveis histórias que nascem e morrem a cada dia em uma cidade tão grande e plural como São Paulo. Antes que o foco do filme recaia sobre a crise conjugal entre a personagem dela, Ana, e Fábio (Domingos Montagner), o diretor aproveita para passear com sua câmera pelas ruas da maior metrópole do país, como que explorando os mistérios e as possibilidades existentes dentro de um território povoado pelas mais diversas pessoas, culturas, origens, destinos. O maior acerto de Luiz Villaça está nessa valorização que dá a São Paulo, tão subaproveitada no cinema nacional que hoje parece somente enxergar o Rio de Janeiro (e que mesmo na cidade carioca só aproveita os núcleos mais famigerados).

Sob a lente de Villaça, São Paulo surge como o personagem central, que aqui sofre ao lado dos protagonistas do mesmo problema: as mudanças. Ana e Fábio se separam depois de 20 anos de relação, obrigando ele a mudar para o prédio de frente ao dela, onde conseguem ainda se ver o tempo todo pela janela. A filha deles está indo morar no interior depois de passar no vestibular, e tudo o que construíram parece estar escorrendo pelos dedos na vida de ambos. O motivo principal da separação é a crise de Ana, que clama por mudanças, novos ares, novas energias, ou uma guinada na vida depois de tanto tempo acomodada, enquanto Fábio não vê necessariamente o cotidiano como algo ruim. Por outro lado, por mais que Ana sinta essa necessidade de mudar, ela sofre de um terrível sentimento de nostalgia crônica, não sabendo lidar com o desapego ou se desvencilhar das lembranças de toda uma jornada ao lado do homem que ama. 

Os sentimentos e lembranças de Fábio e Ana vão se refletir em São Paulo e suas constantes mudanças, que vez por outra acabam por soterrar lugares e memórias no passado. Estabelecimentos como o saudoso Cine Marabá, na República, ou os imponentes casarões abandonados no centro velho da cidade surgem todo o tempo como cenários durante as andanças do casal, que se perde pelas ruas e prédios buscando se religar aos sentimentos e lembranças que se encontram por lá. Tristonho, o filme assume um tom cada vez mais melancólico conforme evoca esses locais abandonados e esquecidos pelo tempo e pela modernidade, enquanto se pergunta curioso sobre as tantas pessoas que devem ter passado por lá. É como se um universo inteiro coubesse em cada metro quadrado da cidade, lotado das mais diversas e hoje esquecidas histórias. 

Diante dessa ambientação tão singela e tocante, conseguimos mergulhar de cabeça no conflito entre Ana e Fábio, que inegavelmente ainda se amam, mas não conseguem enxergar um meio de superar as mudanças inevitáveis que surgem na vida e nos obrigam a deixar para trás algumas coisas. Fábio procurar encontrar uma forma de aderir a essas mudanças sem precisar abrir mão do que já passou, enquanto Ana se encontra perdida e dividida entre retomar os sonhos que deixou pra trás ou continuar seguindo em frente o destino que escolheu tomar. Embora formada arquiteta, trabalha para um demolidora, desmanchando ao invés de criar. 

Há muito pouco de comédia no filme, quase nada. O tom tristonho adotado por Villaça só permite um humor por vezes amargo, mas não é da tristeza que nascem os mais sinceros sorrisos? Por isso esse tempero agridoce, reforçado por um elenco de apoio muito competente, com participações mais que especiais dos veteranos Laura Cardoso, Juca de Oliveira e Fúlvio Stefanini, além de Marisa Orth no papel da melhor amiga do casal. Alguns errinhos no percurso comprometem o que poderia ser um grande filme, como as lacunas na construção de Ana, uma personagem que por vezes soa apenas infantil, o que diminui a proporção de sua crise e suas razões para procurar tantas mudanças. Por outro lado, Denise Fraga compensa essas falhas em uma composição sensível e doce, em perfeita harmonia com Domingos Montagner, que se mostra um promissor talento para o cinema. As afetações cacofônicas da Globo Filmes também são muito bem dribladas ou amortecidas por Villaça, apresentando total domínio sobre seu material, sem cedo ou tarde precisar recorrer a apelações. 

É muito provável que De Onde Eu Te Vejo tenha um sabor a mais para o público paulistano, dada a tamanha importância e protagonismo que oferece à cidade de São Paulo, com a câmera amando cada prédio, cada esquina, cada barzinho, cada parque, cada cinema de rua, da Liberdade à República, do Higienópolis ao Viaduto do Chá, da Avenida Paulista ao Largo do Arouche, do terminal rodoviário Tietê à Avenida Angélica. Um tour gratuito não somente pela beleza urbana e algo decadente da cidade, mas também por sua alma, lindamente captada pela câmera do diretor, que abriga entre todo seu concreto as lembranças das mais variadas histórias, assim como um pouquinho do coração de cada um que já viveu ali - onde tantas histórias nascem, morrem e renascem a cada dia.    

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