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De Vento em Popa

(De Vento em Popa, 1957)
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Chanchada autoconsciente

9,5

Carlos Manga foi um diretor que, desde o princípio de sua carreira, notabilizou-se por dialogar com o cinema de gênero, dentro do universo do cinema popular brasileiro da década de 1950: o que se convencionou a chamar de chanchada. Os primeiros filmes que dirigiu foram lançados em 1954, Nem Sansão, Nem Dalila e Matar ou Correr. O primeiro, parodiava o filme histórico Sansão e Dalila (Samson and Delilah, 1949) e o segundo, parodiava o western Matar ou Morrer (High Noon, 1952). 

Ao longo dos anos, conforme enfileirava trabalhos, Manga continuou a dialogar com gêneros cinematográficos, como na ficção científica O Homem do Sputnik (1959) e o filme Noir em Colégio de Brotos (1955). Certamente, todos os filmes citados também lidavam com a carnavalização típica das chanchadas, mas, ainda assim, Manga sempre conseguiu inserir o seu interesse pelo cinema de gênero nas obras em que dirigiu. 

Trabalhar com gêneros cinematográficos diversos dentro do mesmo universo já demonstrava o talento de Manga. Contudo, é possível dizer que nenhum filme tenha sido tão importante para revelar essa qualidade do diretor como De Vento em Pôpa (1957). Neste, o realizador vai trafegar por duas vias quase opostas ao empregar uma pitada de melodrama em uma obra cômica. O filme trafega entre a alegria e o sofrimento, mas com uma unidade estilística bastante notável, dado o desafio imposto pelo roteiro da obra.

A condição do roteiro é uma primeira questão que chama a atenção. As típicas confusões e trocas de identidades, comuns nas chanchadas, ganham um peso mais interessante, pois nunca acontecem por acaso, mas pela necessidade dos personagens de se esconder. O roteirista Cajado Filho, habitual profissional das chanchadas, cria um grande painel de personagens para a trama.

A narrativa se delineia entre: o casal protagonista, Sérgio (Cyll Farney) e Lucy (Dóris Monteiro), que não se conhecem, mas suas famílias desejam que eles se casem para unir as fortunas. Os pais de Sérgio, Tancredo e Luiza, que, assim como a tia de Lucy, Madame Frou-Frou (Zezé Macedo), desejam que os jovens sigam os seus sonhos e não os próprios. Por último, Chico (Oscarito) e Mara (Sônia Mamede), que pretendem fazer sucesso artístico. Como os dois cômicos do filme, são os principais vetores para as trapalhadas ao longo da narrativa.

No entanto, onde De Vento em Pôpa parece realmente se destacar é em ser um filme bastante autoconsciente sobre a natureza das chanchadas. A começar pelo navio, que tem o nome do estúdio: Atlântida. Ali embarcam Sergio e Madame Frou-Frou como passageiros, Chico como garçom e Mara como penetra. Chico a esconde no porão do navio para eles terem a grande chance de apresentar um número musical como a dupla Maracangalha. A relação entre Chico e Mara se aproxima da relação entre Oscarito e Grande Otelo no navio de Aviso aos Navegantes (1950). Por mais que em De Vento em Pôpa a relação da dupla de cômicos não seja tão conflituosa, há uma condição em que o personagem masculino serve a personagem feminina. Da mesma forma, como personagem branco serve ao personagem negro em Aviso aos Navegantes, em uma inversão de papéis típica do carnaval e que as chanchadas adotaram como construção narrativa.

A condição do Brasil não ser um país que se destacava como potência mundial também faz parte da construção de De Vento em Pôpa. É comum ressaltar Carnaval Atlântida (1952) como um filme autoconsciente, por conta da dificuldade de produzir um filme épico no país e da necessidade de fazer um filme carnavalesco, a possibilidade real de um estúdio cinematográfico brasileiro. Entretanto, De Vento em Pôpa, assume um contexto geopolítico mais amplo. Se existe a impossibilidade de fazer um filme épico, é por conta de uma dificuldade de industrialização do cinema brasileiro, que parte da precariedade econômica do país perante outras nações de maior poderio financeiro.

Originalmente, Sérgio foi para os Estados Unidos estudar energia atômica, a fim de criar a primeira bomba atômica brasileira. Manga e Cajado Filho criam um jogo bastante complexo acerca da situação da visão dos brasileiros sobre a posição do país na geopolítica mundial. O pai de Sérgio é um poderoso industrial. Ele vive em uma grande mansão e financia o rapaz para a criação da bomba. Em outras palavras, tenta valorizar o Brasil internacionalmente por conta do poderio bélico.

Essa identificação da forma como a burguesia brasileira enxergava a marginalidade do país perante o mundo, pode não ser tão explícita como em Carnaval Atlântida, mas atravessa, de forma mais intensa, um país que se via na periferia mundial. Para que não restem dúvidas das intenções de Manga, a música que a empregada da mansão de Tancredo escuta enquanto dança é o mesmo bolero que Lolita (Maria Antonieta Pons) dança em Carnaval Atlântida. Como se De Vento em Pôpa olhasse para a própria produção do estúdio para identificar os discursos que lá foram construídos ao longo dos anos.

A propósito dessas construções de discurso dos estúdios da Atlântida ou das chanchadas de forma geral, outra condição do filme que se destaca por identificar certas características comuns dos filmes é uma diferença entre as classes sociais. Os jovens Sérgio e Lucy, donos de uma futura herança, tiveram a oportunidade de uma educação privilegiada. Afinal, Sérgio foi estudar fora do país e Lucy estuda piano com um maestro italiano. Mesmo assim, são personagens que carregam uma imensa tristeza.

Lucy foi prometida para casar com um homem que nem ao menos conhece e não tem a possibilidade de um futuro, além de ser esposa. Por outro lado, Sérgio foi estudar para se tornar um cientista renomado, mas nunca colocou os pés na escola em que foi matriculado pelo pai. Apaixonou-se por música e ficou por quatro anos tocando bateria em bandas de rock’n’roll, nova moda entre a juventude da América do Norte. Ao chegar no Brasil, além de ter de esconder dos pais que nunca estudou o que foi financiado a ele, deverá se casar com uma moça que não conhece.

Essas condições dos dois protagonistas leva a uma das sequências antológicas do filme. Lucy cantando Dó ré mi, enquanto Sérgio a acompanha no piano sem saber, de início, que era a sua prometida esposa que cantava. A sequência é conduzida com pouquíssimas luzes, enfatizando os personagens como duas figuras que se apaixonam naquele momento específico. O beijo à meia luz vai ser uma convenção em Hollywood. Porém, aqui, em uma subversão do cinema clássico em que as luzes diminuem como um passe de mágica, Chico e Mara que diminuem as luzes do palco em que o casal está. Além disso, funcionam como um espelho da platéia ao se encantarem com o beijo apaixonado do casal, que deixa de ser uma promessa entre as famílias e se torna uma paixão avassaladora entre dois jovens que parecem se encontrar pela primeira vez.

Chico e Mara, que estão ao fundo da cena em que Sergio e Lucy se beijam, são o outro lado da moeda. Não são um casal, mas uma dupla artística que faz de tudo para conseguir se apresentar, inclusive, viajando de forma clandestina em um navio internacional. Entretanto, para os dois, não há tempo para a tristeza que acomete Lucy e Sergio, afinal, eles têm de se virar o tempo todo para que consigam, enfim, fazer sucesso artístico e mudar suas vidas.

Sergio convida os dois artistas para participarem de sua mentira de que se tornou um cientista. Assim, eles conseguem se infiltrar na mansão de Tancredo como professor e assistente, vindos dos Estados Unidos, para auxiliar na construção da bomba atômica. No fim das contas, o que Chico e Mara mais fazem, além de se meter em trapalhadas, é auxiliar Sérgio e Lucy em como eles devem viver suas vidas. Mesmo que sobrem comentários indicando como os dois têm a vida fácil, ainda há um interesse genuíno de Chico e Mara em auxiliar os jovens.

Identificar o conforto social e financeiro que Sérgio e Lucy têm faz de Chico e Mara dois personagens com autoconsciência de sua condição econômica. Entretanto, o interesse dos dois não é ficar ricos, mas ascender ao sucesso artístico. Uma estabilidade financeira seria bem-vinda, claro, mas ficaria em segundo plano diante do desejo de conseguirem ser considerados artistas. Embora nenhum dos dois tenha tido a chance de estudar com um maestro italiano, isso não parece importar tanto. Inclusive, Mara chama o maestro de “seu Lasanha” ou “maestro Ravióli”, debochando de sua pretensa imagem de seriedade e alto padrão musical, pois, na verdade, o duo Maracangalha faz música brasileira, ligada aos ritmos criados no país.

Daí, surge a segunda sequência antológica em De Vento em Pôpa: para abertura de sua boate, Sérgio decide chamar Melvis Prestes, o rei do rock’n’roll, para que a primeira noite de sua casa noturna seja um sucesso e atraia público e imprensa. Porém, surge um impasse e Melvis Prestes não pôde chegar até a boate, o que faz com que Chico suba ao palco para cantar e dançar como Melvis Prestes. A canção Calypso Rock embala Chico e Mara, dançando rock’n’roll de forma cômica e demonstrando que as chanchadas sabiam parodiar mais do que os filmes americanos, mas também o contexto social em que se inseria, ao colocar os cantores de música brasileira para debochar do rei do rock.

Vale destacar que toda a autoconsciência de De Vento em Pôpa seria inviável se não fosse Carlos Manga e seu grande conhecimento sobre o cinema americano e seu desejo de, ora aproximar-se, ora parodiar esses filmes. Além disso, Manga amarra os diversos personagens dentro da estrutura narrativa com muito talento e cria ótimas sequências.

Além das duas sequências musicais mencionadas acima, há outra que merece destaque: Madame Frou-Frou, que estava no navio junto de Chico, foi dopada por ele para que ela não cantasse e desse lugar ao Maracangalha. Ele acreditava que nunca mais se veriam, mas ela fica hospedada na casa de Tancredo, onde está a sua sobrinha, Lucy. Até então, um não sabe que o outro está hospedado na mesma casa e, mais ainda, que ficarão no mesmo cômodo. Em uma longa cena de alto teor cômico, Manga constrói um suspense entre os dois, se movendo pelo mesmo quarto sem se encontrarem. Auxiliado por dois comediantes de grande talento como Oscarito e Zezé Macedo, a cena é o oposto do que se costuma pensar sobre o humor da chanchada tresloucado e histriônico. Pelo contrário, o que acontece nesse momento é bastante sutil e sem diálogos, apenas com o apoio musical em alguns momentos. Costumava-se questionar a qualidade técnica e artística das chanchadas, mas aqui Manga prova todo o seu talento como diretor.

De Vento em Pôpa é um dos trabalhos mais fascinantes de Carlos Manga por ser um filme sobre aquilo que o diretor mais conhecia: cinema. Mais do que isso, é um filme de cinema brasileiro, que não se valoriza ou se ressente por sua origem, mas expõe os tipos sociais e as contradições do país por meio do deboche. No fim das contas, a obra é um dos mais importantes filmes brasileiros da década de 1950 e, de alguma forma, antecipa um desejo de parte dos cineastas da década seguinte em pretender identificar os problemas sociais do país.

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