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Demônio das Onze Horas, O

(Pierrot le Fou, 1965)
8,2
Média
468 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Implodindo uma Época.

10,0

É necessário, ao se debruçar sobre O Demônio das Onze Horas, compreender o filme com olhos e espírito da época. Ainda que o filme ganhe novas significações com as décadas, marque seu legado através das influências e referências, é difícil desassociar a obra de Godard de sua época e do valor histórico que teve em seu tempo.

Isso posto, é natural analisar o filme e seu zeitgeist como uma relação simbiótica: Godard em seu décimo longa-metragem criava uma obra que carregava a urgência de Acossado (À bout de souffle, 1960) em suas rupturas com narrativas e estéticas tradicionais. O Demônio das Onze Horas investia em locações naturais, descontinuidade narrativa e construção referencial: filmado sem roteiro, abusando da improvisação, investindo em jump cuts na montagem e nas cores primárias na concepção de iluminação e figurino, herança provavelmente da pop art em voga na época, baseando-se em design e quadrinhos.

Historicamente, o paradigma iniciado pelo neo-realismo italiano, desmanchando com o progressismo psicológico do cinema industrial e organizando o filme em blocos, elencando protagonistas nômades, anacrônicos às idealizações da sociedade, com Godard se aproveitando dessas temáticas que todo artista e todo jovem flertava então (beatniks, motoqueiros, o nascente movimento hippie) para apresentar Ferdinand Griffon, “Pierrot, O Louco”, apelido dado pela sua parceira de estrada, a babá Marianne Renoir, que abandonam relações da cidade grande para fugir de gângsteres no litoral do Mar Mediterrâneo.

Nesse interim, Godard referencia os filmes de crime com assassinatos, diálogos dúbios, fugas e violência gráfica, musicais com a canção “Ma Ligne de Chance” ilustrando a paixão efervescente e espontânea do casal protagonista, sem compromissos e sem destino, interrompendo o filme para descrever de forma espetacular certas impressões ordinárias, com música e coreografias, os filmes de estrada com o deslocamento afetando produção e narrativa - a transformação de roupas, figurinos e ações cada vez mais aleatórias, violentas e melancólicas.

Há também espaço para o metacinema - a quebra da quarta parede, os faux raccords, as sequências meramente plásticas, inseridas para criar efeito e não para desenvolver narrativa, a multiplicidade de pontos de vista exibidos - vide a cena em que Pierrot, em uma festa onde a luz muda de cor de forma ininterrupta - plasticismo sobre texto, Godard extraindo a lição dos melhores melodramas e musicais - encontra o diretor Samuel Fuller , interpretando a si próprio, e o questiona sobre o que seria o cinema, basicamente a pergunta da nouvelle vague, o que os levava a fazer novos filmes e tentar agressivamente aposentar os velhos.

O veterano diretor, consagrado pela crítica e por um público underground pelos seus filmes de pequeno orçamento e grande energia, explica para o burguês em fuga que o cinema é um campo de batalha - amor, ódio, ação, violência, morte, ou resumindo, emoção.  Aquelas sentenças curtas e definitivas, que definem década, e que define o filme, com Godard se aproveitando de todos esses elementos para apresentar em seus blocos seu distanciamento cada vez maior dos filmes tradicionais. Não narrar, mas mostrar - demonstrar, explicitar, concentrar emoções em efeitos, desassociando a imagem dialética-discursiva e abraçando a imagem testemunha típica do cinema moderno.

E imprescindível não observar, o cinema político, aquele que pauta todo o filme e cada filme do diretor, dos primórdios até principalmente os que faria nos anos seguintes, onde Godard revisaria a “política dos autores” da Nouvelle Vague e partiria para um cinema realmente fragmentário, filosófico, corais temáticos e poéticos obsessivo tornar seus signos potências, pontos de partida e não de chegada. Em O Demônio das Onze Horas, Godard ensaia de certa forma até de maneira metafórica - o bem nascido franco-suíço passava por uma transição por não apenas se aborrecer mas também se revoltar com as políticas de cinema tradicionalmente oferecidas ao grande público e abraçava filme a filme o cinema ideológico.

Se Demônio… já demanda a ruptura com seu percalço amalucado e acidentado, Godard pouco tempo depois filmaria os longos planos e monólogos em Weekend à Francesa, pensaria sobre a atual geração de jovens politizados em A Chinesa e criaria o grupo Dziga Vertov, onde deixaria para trás apenas três anos depois desse filme a noção de autoria, utilizando a aplicação do legado dramatúrgico de Brecht (já germinado aqui: interação com o público, amplo uso de intertítulos narrativos e/ou lúdicos, desconstrução do que se pensa como realismo…) a uma forma contestadora e ideologias de cunho marxista para fazer cinema.

O que começava como a rebeldia no início dos anos 60 com Belmondo fumando cínico menos de uma década depois já se tornaria uma guerra estética, ao vivo e a cores, com o fotógrafo Raoul Coutard injetando na forte presença da influência de design e pop art especialmente as cores da bandeira francesa, branca, vermelha e azul, primários e vívidas em seus tons opacos repetidas em figurinos, objetos e filtros constantemente ao longo do filme.

O Demônio das Onze Horas marca certo caráter histórico por ser um dos últimos filmes do diretor antes de descambar de vez no cinema já mais modernista possível. Aqui, impregnado das ideias da política de autoria - a visão pessoal como catalisadora de grandes mudanças, faz do décimo longa de Godard uma implosão das rupturas já previamente desenhadas - tudo aqui é levado ao nível do exagero literalmente musical e cartunesco - é um cinema de montagem, um cinema sem dramaturgia, afastado do romance e da psicologia, um grande laboratório de imagens em movimento oferecendo múltiplas combinações, com a história do cinema referenciada como só um apaixonado saberia fazer, mas satirizada como só um provocador teria coragem. Filmando, Godard era Pierrot, consciente da sua história, em rota de colisão com a consciência, com a ação, com a política… E com a emoção - o cinema poderia oferecer tudo isso, com molduras, músicas e atores filmados.

O Pierrot Louco é o soldado ensandecido na vanguarda do campo de batalha, pronto para encontrar seu próprio fim e levar quem estiver perto junto. A cena final de O Demônio das Onze Horas é um afunilamento das multiplicidades estéticas oferecidas, uma síntese dos pensamentos oferecidos sendo resumida de forma grosseira e cômica e um convite à transformação do cinema, sem amarras e sem limites, acabando como um ponto final repentino, desesperado, um encerramento possível frente a milhares de outros, refletindo o clima urgente, “na corda bamba” da obra. Foi um dos grande sucessos do seu ano (o décimo quinto mais visto) e marcava então o auge da nouvelle vague como criadora não só de burburinho, mas também de discussão. Como Pierrot, os anos sessenta foram essa pavimentação íngreme e imprevisível da colisão de novas e velhas estéticas: em qualquer sentido possível, o cinema nunca mais poderia ser o mesmo.

Comentários (4)

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 14 de Agosto de 2015 - 10:15

Crítica espetacular!

Este e o elhor filme de Godard!

Daniel Borges | sexta-feira, 14 de Agosto de 2015 - 18:14

eu que sou louco por não ter visto esse antes. Crítica foda demais Brum, parabéns.

Josiel Oliveira | domingo, 05 de Junho de 2016 - 13:01

Das melhores críticas que eu já li aqui no site! O filme merece!!

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