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Críticas

Cineplayers

Uma bela e humanística obra, onde os personagens devem escolher uma única memória de suas vidas para levar para a eternidade.

8,5

Rotineiramente, todas as segundas-feiras, um grupo de funcionários de um purgatório se reúne para definir o planejamento para a semana que se segue. Eles são responsáveis de recepcionarem a vinda de um grupo de pessoas que está chegando e guiá-las no que têm de fazer neste breve espaço do pós-vida. À princípio, explicar a elas que estão mortas, apesar da maioria já se dar conta disto; depois, cada funcionário se encarregará de uma (ou no máximo duas) pessoa, a ajudá-la a escolher uma única memória de sua vida, que será sua única lembrança a partir de então.

Apesar desta estrutura lembrar A Felicidade Não Se Compra (inclusive, o título em japonês é uma homenagem ao título em inglês do filme do Capra, "It's a Wonderful Life"), o tema aqui discutido se aproxima muito mais de Hiroshima Mon Amour, recobrando a finco a questão da memória, dentre outras coisas. Como resumir toda sua vida em alguns minutos de filme? Como escolher aquele momento que mais lhe agradou, ou que mais teve significado? Enquanto alguns não conseguem encontrar um instante sequer de felicidade, outros têm dificuldade em escolher entre milhares deles. Uma garota escolhe instantaneamente um passeio na Disneylândia, mas é depois convencida pela sua atendente (que disse estar há um ano no trabalho e já ter visto mais de 30 garotas escolherem a terra do Mickey) a escolher algo mais significativo, como uma lembrança de estar deitada ao colo da mãe. Aliás, a maioria vai se remeter à infância, em especial aqueles que, de início, achavam sua vida uma desgraça completa. É interessante, inclusive, ver até onde isso chega. Um rapaz escolhe uma lembrança de quando tinha seis meses de idade, e estava deitado no tatame vendo o sol do outono brilhar na janela (o que gera uma discussão entre os atendentes, sobre o quanto no tempo conseguimos lembrar). Já uma outra senhora se apresenta com um caso mais complicado, já que ela já havia - inconscientemente - escolhido a lembrança antes de morrer. No final de sua vida, ela havia se trancado em sua infância, o que limita bastante sua escolha.

No final das contas, é uma escolha difícil para qualquer um, mesmo para aqueles que pensaram em trivialidades, como a garota da Disneylândia ou um homem que queria lembrar suas aventuras pelos bordéis. Dois casos em especial demoram mais; o do velho senhor Watanabe, que quer uma memória que prove sua existência, e a do jovem Iseya, que simplesmente se recusa a escolher. Talvez por ser jovem e rebelde, e contestar várias coisas do sistema, ele se torne o personagem mais interessante dos recém-mortos. Ele diz que não quer escolher uma única memória, que não tem o porquê, que assim ele estaria tomando responsabilidade por sua vida. O que é escolher uma memória? Boa parte dos que vieram neste grupo morreram velhos, como se lembrariam exatamente do que ocorreu em vida, e como ocorreu? Não poderiam eles terem criado falsas memórias? Iseya entende essas questões melhor que qualquer um ali; se é para levar apenas um momento na lembrança para o Nada, não precisa necessariamente ser uma lembrança real de vida, pode ser apenas uma memória construída. Ele pergunta sobre a possibilidade de se recriar um sonho que ele tenha tido, mas eles dizem que isso é impossível; ele então pergunta se eles podem recriar o futuro - o futuro aos olhos dele. Para ele, é muito mais significativo ter como única memória um futuro hipotético que ele construiu, um mundo ideal, que uma simples recriação do passado, mas novamente recebe um sonoro NÃO. "O sistema de vocês precisa de uma reforma", ele indaga, indignado.

Aliás, qual o porquê daquilo tudo? Nem os próprios funcionários parecem saber. Eles desconhecem o que existe "do outro lado", e só estão ali fazendo seu trabalho, também sem saber direito porque. Não há deus, nem céu nem inferno, muito menos julgamento final. As almas mortas apenas são encaminhadas a este local, que é uma escola abandonada, e que serve de purgatório. Um dos funcionários conta que há outras instituições como aquela, mas isso é tudo que sabemos; ela não é exatamente um "outro mundo", mas sim algo intermediário. A bandeira do estabelecimento mostra dois círculos, em planos diferentes, se entrelaçando, o que sugere que este seja uma espécie de universo paralelo que co-existe até certo ponto com a realidade (uma das funcionárias, no meio do filme, sai para dar uma volta na cidade, e parece não ser vista por ninguém). Os próprios funcionários estão lá meio que por obrigação, já que são pessoas que morreram, mas não foram capazes de escolher uma memória no tempo determinado, e ficaram por lá trabalhando, mas em momento algum questionaram o que faziam, ou o porquê das regras tão rígidas quanto à escolha da memória. O local, inclusive, parece um prédio de escritório comum; tem gente lavando o chão, hà papeladas, inclusive alguém na recepção que anota os nomes dos recém-mortos que chegam, religiosamente, toda segunda-feira, sem fazer perguntas, ou sequer surpresos por não estarem mais vivos.

Mas o verdadeiro foco do filme não está nos mortos, e sim nos funcionários (que, a bem da verdade, também estão mortos). O grupo dos conselheiros, que auxilia as pessoas nas suas escolhas é relativamente pequeno, composto por quatro empregados e um chefe, sendo que três deles recebem maior atenção. Kawashima, interpretado pelo Susumo Terajima (regular nos filmes do Kitano e do Koreeda), age como a pessoa mais comprometida com o trabalho ali, quase como um chefe-auxiliar. Mas o personagem justifica o ator, já que também possui seus momentos de reflexão e ternura (inclusive, um dos casos que ele cuida é de uma senhora que parece mais interessada em florir o prédio que escolher uma memória, o que gera algumas das cenas mais bonitas do filme). Os outros dois são o conselheiro Mochizuki e sua assistente, Shiori. Apesar de aparentarem mais ou menos a mesma idade, Shiori está morta há apenas um ano, e estaria hoje com 19, enquanto Mochizuki morreu faz 50 anos, e estaria hoje com 73 (por estarem mortos, o tempo não exerce qualquer influência neles). Mochizuki, aliás, representa um dos perigos da "profissão", que é se deparar com algum elo de sua vida passada, que é o que acontece com o senhor Watanabe. Em vida, ambos foram apaixonados pela mesma mulher, só que Mochizuki morreu primeiro, e agora caiu como conselheiro de Watanabe. O relacionamento entre os funcionários, e o sentimento de camaradagem (que é visto muito bem no final) é uma das grandes atrações deste filme.

O filme também faz uma referência à artificialidade humana e também do cinema. As memórias são recriadas em filme, num estúdio de gravação bem precário dentro do pátio da escola, onde os próprios mortos se interpretam, mesmo que as memórias sejam de décadas atrás. Isso serve para reforçar o caráter de falsidade das memórias, ontologicamente falando; mas isso não assume a postura de crítica. Uma certa hora, o chefe Nakamura diz que nossa percepção da lua varia de acordo com a luminosidade, mas que a lua em si não muda nunca; o mesmo pode ser dito sobre as memórias (ou sobre o filme em si). Todas as memórias escolhidas são, bem ou mal, coisas banais, seja um piquenique nos bambusais, ou uma dança de infância, ou mesmo o dia-a-dia de um casal (a única mais incrementada é um vôo de avião, que gera uma ótima sequência ao tentarem recriá-la no estúdio), mas são o que de mais significativo aconteceu para aquelas pessoas.

Esse é apenas o segundo filme do diretor (que começou numa carreira de documentários, e estreiou no maravilhoso Maborosi), mas já o apontava desde a época como um dos grandes novos nomes do cinema mundial (algo que continua a se confirmar hoje em dia). É interessante, inclusive, como essas experiências documentais dele deram uma base ao filme. Toda a primeira metade do filme tem um ar documental, quando os mortos são entrevistados sobre o que gostam, quais os seus melhores momentos, etc. Inclusive, a fotografia do filme (filmada em um belo 16mm) foi feita por Yutaka Yamasaki, um cinematógrafo já de tradição no documentário. Por mais que este filme seja sobre mortos, toda a tristeza do fim da vida, e o vazio que se segue após assistirem aos filmes, ele é também uma grande obra humanística, que prova o que o velho Capra já dizia há muito tempo: it's a wonderful life.

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