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Depois do Casamento

(After the wedding, 2019)
6,5
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Críticas

Cineplayers

Dramalhão de requinte oscilante

6,5

O primeiro plano de Depois do Casamento é uma sequência aérea de drone que encontra Michelle Williams meditando em um templo na Índia. A cena é inteligente, evocativa sobre o modo como uma mulher nascida na América chegou à Ásia Meridional. E é suficiente, o que gera um incômodo quando o diretor e roteirista Bart Freundlich dedica os minutos posteriores a sublinhar o modo de vida dessa mulher — entregue a uma cultura simples, abnegada de bens materiais, dedicada a uma vida de meditação e espiritualidade, alimentação responsável e filantropia em um orfanato em Calcutá — em contraponto com o seu extremo em Nova York.

A impressão inicial é, portanto, assustadoramente maniqueísta. A Índia é precária, barulhenta, movimentada, caótica, porém de gente feliz, calorosa, amorosa, de verdade. A capital financeira do mundo nos Estados Unidos é encenada em seu apogeu: uma empresa de publicidade milionária, tecnológica, de espaços impecáveis, porém de uma assepsia e de uma frieza que transmitem as piores sensações — logo confirmadas por uma hierarquia gélida e relações interpessoais marcadas por autoritarismo, medo, bajulação e interesse. Essa dualidade é acentuada por uma fotografia que se tornaria clichê depois de Traffic, de Steven Soderbergh, há quase 20 anos: no país pobre, bem saturada; no país rico, fria e azulada.

Assim, o início de Depois do Casamento prenuncia críticas típicas dessa nova entidade conhecida como textão de Facebook: análises falhas, rasas, feitas por gente cheia de boa intenção, mas carente de um olhar pragmático e acesso ao contraditório. Mas não, não é o caso. A refilmagem do longa-metragem homônimo da cineasta dinamarquesa Susanne Bier não tem a pretensão de encaminhar um discurso pró isso ou aquilo apesar de romantizações pontuais, representações cruas da lógica capitalista e cenas inofensivas desse choque de dois mundos distintos. Quando o conflito se estabelece, o filme de Bart Freundlich vai tomando forma.

Depois do Casamento é daquelas obras com uma boa sacada que nem a utilizam como um high-concept (aquela ideia potente que vende o projeto de cara, no argumento), nem como sua reviravolta final, vide thrillers do naipe de Psicose, Sexto Sentido ou A Pele Que Habito. Esse conflito (que não entregarei) vai sendo apresentado aos poucos, então seus motivos e desdobramentos, portanto, sem se valer do choque da revelação, mas se empenhando no modo como esse enredo é construído e encenado. Aí reside a qualidade maior do longa-metragem: em sua dramaturgia e ótimo elenco.

Michelle Williams é a estrela principal da companhia. Mais parecida do que nunca com Carrie Mulligan devido ao penteado curto, ela tem o que é preciso para interpretar tantos aspectos conflitantes (um passado controverso e um presente exemplar, sua figura cândida e personalidade firme, uma mulher espiritualizada que precisa, tantas vezes, conter a raiva etc) com uma naturalidade impressionante — muitas vezes, sem nem abrir a boca. Julianne Moore é brindada com a personagem de maiores arroubos de emoção e corresponde com o talento habitual, ao passo que Billy Crudup empresta sua maturidade a um paizão delicioso de interpretar (e ver na tela). O elo que conecta o time e a trama é a novata Abby Quinn, de rosto expressivo, atuação modesta, mas competente e de potencial.

Em termos de direção de arte, figurino e locações, Depois do Casamento alia acolhimento e requinte por se tratar de um filme que acompanha uma família rica formada por pessoas imperfeitas e afetuosas (ou seja, reais). Outros aspectos acessórios são as metáforas, que enriquecem o roteiro servindo justamente a outro propósito: de tirar o público de um lugar passivo, mesmo que de forma tímida e indecisiva. Analogias como a da forte árvore caída e do ninho de pássaro destruído, por exemplo, são artifícios construídos com inteligência por Bart Freundlich: em planos severos (plongée) e discussões acaloradas, chamam atenção para si e do público, sendo simples o suficiente para todo mundo captar o sentido e sutis, delicadas, ao ponto de recompensá-lo com as respostas desses signos “sofisticados”. As vidas profissionais de Theresa (uma empresária bem-sucedida e controladora) e Oscar (um artista contemporâneo que acolhe com sensibilidade até os elementos mais abstratos) contribuem ainda mais decisivamente no adornamento desse melodrama.

Mesmo sem ter visto o longa-metragem original, é possível dizer que Depois do Casamento é um projeto que justifica com louvor sua razão de ser. Após aquele início temerário, o argumento importado da Europa encontra seu lugar nos talentos de Hollywood e o filme se concretiza com identidade e competência. Até o fim, dramatizando de maneira satisfatória e madura uma história cujo maior potencial era o de soar tragicamente piegas.

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