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Críticas

Cineplayers

Marcas da violência.

8,0
A abertura de Detroit em Rebelião (Detroit, 2017) revela a trajetória da população negra americana desde a época da massiva migração do sul para o norte do país atrás de oportunidades de trabalho, passando pelo período pós-Segunda Guerra Mundial e o surgimento de suas comunidades isoladas nos bairros periféricos de grandes centros urbanos, até estacionar na década de 1960 diante de uma série de rebeliões contra a brutalidade da polícia que ocorreu na cidade-título. O interesse inicial da diretora Kathryn Bigelow é quase documental, um acompanhamento factual (imagens de arquivos inclusas) da rotina cada vez mais insustentável da população desses bairros, que um dia decide se rebelar contra o abuso de autoridade da polícia local e inicia uma verdadeira guerra civil sem precedentes. Nesse cenário de caos, Bigelow novamente vai discutir as raízes e todos os ângulos envolvidos numa situação-limite, procurando o ponto nevrálgico que impede a ruptura desse círculo vicioso de ódio e violência. 

Detroit segue a mesma lógica de Guerra ao Terror (The Hurt Locker, 2008), de partir de um conflito histórico e dele extrair um recorte no qual são trabalhadas todas as questões morais e dramáticas envolvidas. As guerras, sejam elas civis, diplomáticas, internacionais ou mesmo ideológicas, têm sempre em comum o fator da violência, da falta de humanismo e do desentendimento entre as partes – por isso a abordagem da diretora permanece igual, mesmo que agora não estejamos mais acompanhando os soldados americanos no Iraque e sim uma população à mercê da segregação e do preconceito institucionalizados. Bigelow não julga, não aponta os culpados, não sugere soluções, mas tem a coragem e a firmeza de expor todos os incômodos lados da questão, que de uma forma ou de outra acabam por nos atingir em maior ou menor grau – ou, em poucas palavras, a verdade nua e crua.

Após o passeio resumido pelo contexto histórico que levou até aquela situação e depois de gastar sua primeira meia hora na correria de acompanhar inúmeros personagens por entre as ruas de Detroit, a diretora repousa finalmente num acontecimento fatídico em 1969, quando uma batida policial em um motel cheio de hóspedes negros resultou num dos capítulos mais tenebrosos da história americana. O mais chocante de tudo é como isso continua reverberando na América de hoje. 

Uma vez dentro do motel, Bigelow passa a trabalhar o tempo de outra forma, atribui um peso maior em sua dramaturgia, estabelece todas as conexões entre os personagens e se detém nessa interminável noite, onde sustenta um filme de horror dos mais tensos e apavorantes dos últimos anos. Toda a carga dramática de Detroit será trabalhada nesse miolo, explorada a um nível quase enlouquecedor, sem que em momento algum a diretora perca o ritmo crescente de tensão. Emparedados pela polícia, diversos civis negros passam por horas de tortura psicológica e física nas mãos de três policiais locais. Os dramas de cada um ali, incluindo os brancos, são exteriorizados; a proximidade da morte os paralisa; o peso da farda e da consciência os enlouquece. A solidez alcançada pela narrativa nesse ponto é impressionante e o desempenho de cada um do elenco surpreende – em especial John Boyega, como única figura de autoridade negra no local, no dilema de tentar apaziguar a situação, mas com medo de só torná-la ainda pior. 

O passeio de gêneros tecido por Bigelow demonstra enorme destreza (e com o auxílio de uma maravilhosa direção de arte e fotografia), partindo do formato documental para entrar no realismo social, desembocar numa sequência muito bem montada e digna dos grandes filmes de ação do cinema, até finalizar no drama de tribunal em sua melhor forma, passando nesse meio pelo terror e pelo alívio momentâneo do musical, presente no núcleo de um dos personagens. Para o além de suas habilidades enquanto cineasta cada vez mais segura e corajosa, Bigelow faz de seu filme um desesperador alerta para a América de hoje, num período em que questões como racismo e violência urbana continuam em voga, porém protegidos por um véu de suposto avanço social conquistado ao longo das décadas. Nesse cenário de policiais admitindo abertamente que atiram para matar em suspeitos negros, e de passeatas organizadas por grupos de supremacistas brancos, amparadas por um presidente conivente, fica mais claro do que nunca que as marcas de sangue inocente contra a população negra americana estão tão vivas quanto àquelas que chocaram o mundo na Detroit dos anos 1960. 

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