Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

As máscaras da sociedade moderna.

7,5

No festival de Veneza de 2011, em meio a exibições de filmes de cineastas de calibre, como David Cronenberg e Abel Ferrara, foi a produção de Roman Polanski que atraiu maiores atenções. Reunindo um elenco de apenas quatro atores - todos consagrados – e se baseando em uma das peças teatrais mais famosas da última década, da francesa Yasmina Reza, Deus da Carnificina (Carnage, 2011) prometia muito, e embora não tenha atendido a todas as expectativas, sua fórmula simples atingiu o objetivo de criticar com muito bom humor as pessoas por trás das máscaras exigidas para se viver com certa medida de paz em uma sociedade moderna. Embora tenha sido criticado por muitos por uma direção supostamente sem graça e omissa, Polanski acabou aproveitando aqui uma oportunidade interessante de reafirmar algumas questões que sempre estiveram muito presentes em seu cinema e que, coincidentemente, se reúnem em uma história escrita originalmente por outra pessoa. O encontro do cineasta com o texto de Yasmina Reza não poderia ter sido mais feliz.

A trama de Deus da Carnificina é, como toda boa comédia satírica, extremamente simples, carregada o tempo todo pela linguagem verbal e corporal de seus atores confinados em um ambiente potencialmente sufocante. Tudo começa com uma discussão entre dois pré-adolescentes em um parque, que resulta em uma briga, onde um deles sai com os dentes quebrados. Os pais da vítima, Penélope (Jodie Foster) e Michael Longstreet (John C. Reilly), decididos a lidarem com esta situação da forma mais civilizada possível, convidam os pais do agressor, Nancy (Kate Winslet) e Alan Cowan (Christoph Waltz), para uma visita em seu apartamento com o objetivo de entrarem em um consenso. O que começa com um desfile de hipocrisias – falsos pedidos de desculpas, falsos sorrisos, falsas tentativas de reconciliação, falsos elogios, falsos perdões – desanda em queda livre para uma verdadeira carnificina, como indica o título, e os reais sentimentos entalados na garganta de todos ali veem à tona.

Muito comparado ao clássico de Mike Nichols, Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? (Who’s Afraid of Virgínia Woolf?, 1966), Deus da Carnificina, na verdade, é cheio de particularidades que o tornam um filme bastante ímpar e livre desse tipo de comparações. Embora se trate de uma obra com similar estrutura, onde dois casais se confrontam em agressões verbais sem fim, o foco do trabalho de Polanski é voltado a abordar questões que vão além do âmbito conjugal. Sua gama de assuntos é mais ampla, ao usar quatro distintas personalidades que cumprem com a função de representar todo o tipo de hipocrisia que mascaram pensamentos mais sérios dentro de uma sociedade que, em suma, vive de aparências. No fim, cumpre bem com seu objetivo de entreter o público com um humor negro afiadíssimo enquanto promove reflexões a respeito dos padrões de moral que regem uma situação coletiva de constante decadência, se assemelhando muito mais às obras de Buñuel, que visavam criticar a burguesia através da exposição ao ridículo, como O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962).

O elenco de figurões que comandam essa comédia foi o fator mais importante na hora de chamar a atenção do público, maior até do que o nome da direção. Afinal, se trata de um filme todo trabalhado em cima da função dos seus atores. Diferentemente da peça, porém, aqui a história tem o privilégio do close-up, que permite ao espectador acompanhar cada mínima mudança de expressão no rosto de cada um. Levando-se em conta que se trata dos rostos de atores habilíssimos como Jodie Foster (a melhor do elenco), Christoph Waltz, John C. Reilly e Kate Winslet, então podemos dizer que a vantagem é grande. Com precisão de mestre, os atores se revezam para sustentar a trama e impedir que tudo se torne enfadonho, apresentando cada vez mais nuances das personalidades dos personagens, de modo que parece que a cada novo minuto descobrimos uma nova faceta de cada um. Em pouco mais de uma hora, temos um estudo riquíssimo coletivo de quatro personagens distintos – lembrando que muitos não conseguem alcançar tanto êxito em um filme de horas de duração focado em apenas um único personagem.

Mas o grande ponto forte de Deus da Carnificina só poderá ser realmente captado por aqueles que entendem um pouco mais do cinema de Roman Polanski. Sempre focado na influência do ambiente sobre os personagens, na claustrofobia de lugares fechados agindo diretamente nas atitudes destes, um dos grandes temas – se não o maior – na carreira de Polanski foi a deterioração física e mental do homem moderno diante de uma sociedade cada vez mais individualista e decadente. Como sempre, os ambientes exercem a função de uma personagem, interagindo de forma decisiva na história, como é o caso da trilogia do apartamento. Por conta disso, o diretor faz uma pequena e extremamente sutil inversão de foco e coloca sobre a responsabilidade de seu ambiente a obrigação de conduzir a história – algo que na versão teatral fica mais por conta dos atores.

Interessante notar que Deus da Carnificina em momento algum se propõe a ir além de sua discussão central comandada pelos quatro personagens, e talvez por conta disso sobra uma sensação de que faltou um clímax, um gran finale para arrebatar o espectador e terminar de transmitir suas críticas com êxito. Mas para um filme que se compromete em retratar uma realidade crua, até que não é difícil entender essa opção. Afinal de contas, na realidade do dia a dia, quase nunca questões como essas levantadas são definitivamente solucionadas. Em meio a uma sociedade regida por tanta hipocrisia, egoísmo, individualismo, excesso de trabalho e mesquinharia, é praticamente impossível esperar que quatro adultos consigam resolver uma questão inicialmente tão simples como uma discussão jovem – tanto que os próprios garotos que deram início a toda essa situação nunca são mostrados de perto pela câmera de Polanski. Eles são apenas o estopim, um mero detalhe, para seus pais deixarem acidentalmente cair suas máscaras e mostrarem os valores que realmente os guiam.

Comentários (8)

Patrick Corrêa | sábado, 09 de Junho de 2012 - 22:18

Também gostei mais do desempenho de Winslet.

Rodrigo Torres | sábado, 30 de Junho de 2012 - 10:20

Ótima crítica.

E sério, não consigo achar um ator melhor. A personagem de Foster é mais extrema e se destaca desde o início (quando se embebeda, uns interpretam que ele está exagerada; eu prefiro pensar que ela foi bem, diante do assesso de uma mulher [irritantemente] politicamente correta que em um momento explode), mas adoro o modo como C. Reilly interpreta um homem temperamental que tenta, sem sucesso desde o início, mostrar-se uma pessoa condescendente. Winslet e Waltz vão muito bem por seus personagens serem ainda mais estereotipados (a fútil vomita e o workaholic ri que nem porco, bizarro!) e não ficarem restritos a isso, mostrando-se bastante complexos, convincentemente afáveis em certos instantes.

Muito bom filme!

Rodrigo Cunha | segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 - 01:18

E o mais engraçado: apesar de tudo o que aconteceu, os dois meninos estavam de boa no final, conversando, e o hamster vivo hahaha. Isso levanta ainda mais questões depois de tudo o que vimos no filme.

Alexandre Marcello de Figueiredo | terça-feira, 20 de Maio de 2014 - 15:18

Tinha tudo para ser chato, mas os quatro atores dão um show e segura o espectador até o final em meio a uma série de diálogos e discussões que acaba mostrando o verdadeiro caráter de cada um.

Faça login para comentar.