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Críticas

Cineplayers

A obra-prima que pontuou o Cinema Novo no Brasil.

10,0

Eram anos de ilusões desenfreadas, ligadas diretamente ao desenvolvimentismo iniciado pelos anos Juscelino Kubitschek. Aspirava-se um país que finalmente se livraria de um não-oficial escravismo colonial e que pudesse responder à altura os anseios de seu povo. Nesta época romântica (depois despedaçada com o advento da tomada do poder pelos militares), em que uma geração de cinéfilos, que depois se tornariam críticos e realizadores, desejavam um novo modo de viver a vida e o cinema, inspirados pelo despojamento do neo-realismo italiano, pelas elucubrações da Nouvelle Vague francesa e pelo cinema brasileiro independente da década de 1950.

Esse “novo” seria concretizado na abrangência simultânea do tema da preocupação social e nacional e uma forma de renovação da linguagem cinematográfica. Filmes como Mandacaru Vermelho (1960), Cinco Vezes Favela (1961), Os Cafajestes (1962), Assalto ao Trem Pagador (1962), Vidas Secas (1963), Ganga Zumba (1963) e Os Fuzis (1963) se encarregaram de apresentar esse novo jeito de fazer cinema para o país, uma espécie de resposta à situação vigente e um mecanismo de discussão da realidade em seus mais amplos aspectos.

Entretanto o filme que pontuou o movimento – até então e para sempre – surgiu com o nome Deus e o Diabo na Terra do Sol, lançado em 1964, cujo impacto sobrevive aos dias atuais. Glauber Rocha, seu realizador, utilizou-se do espaço físico e simbólico do sertão, no qual as contradições de cinco séculos de colonização se apresentam com maior intensidade e no qual a resistência do povo sobrepuja a miséria, para apresentar sua alegoria sobre a perpetuação da injustiça social, através da personificação da sociedade por sertanejos, coronéis, cangaceiros, matadores e profetas.

Glauber, na tentativa de promover uma espécie de “desalienação” do espectador em relação às estéticas dominantes, e em compasso com as teorias soviéticas de montagem, já começa o seu filme com elipses que condensam situações, marcando referenciais e descartando a narrativa da evolução contínua e padrões assimilados como o plano-contraplano. Seguem-se momentos em que a montagem é descontinuada e combinada com o uso de uma trilha sonora ruidosa e saturada, causando grande desconforto, passando logo em seguida para um grande silêncio contrastante. O uso de câmera na mão, trazendo o espectador para “dentro do filme”, como testemunha, é outro recurso utilizado, dando razão ao grande poeta russo Maiakóvski, para quem uma poesia revolucionária deveria ser acompanhada de uma linguagem revolucionária.

O filme estrutura-se linearmente em três blocos bem distintos que são delineados de acordo com o momento de seu personagem principal. O primeiro deles é a da apresentação da situação inicial (a questão do latifúndio), com Manuel vaqueiro (Geraldo Del Rey) vivendo na roça, em precárias condições, com a mulher Rosa (Yoná Magalhães) e a mãe. Quando por ocasião do acerto de contas com o patrão Coronel Morais (Milton Roda), sente-se lesado e comete homicídio. É perseguido por jagunços e vê sua mãe falecer. Em sua fuga, encontra o messias Sebastião (Lídio Silva) e seus seguidores, o que representa o fim do primeiro bloco e início da parte intermediária, que concentra-se na religiosidade. É o momento Manuel beato, que busca a purificação da alma e que sofre oposição da cética Rosa, que não acredita no profeta. Enquanto isso surge Antônio das Mortes (Maurício do Valle), contratado pelos incomodados latifundiários e pela Igreja Católica, com o fim de dar cabo a Sebastião. É quando acontece a segunda transição, com Antônio das Mortes exterminando os beatos e Rosa matando Sebastião. O terceiro bloco então surge com Manuel e Rosa, conduzidos pelo cego Júlio a Corisco (Othon Bastos), sobrevivente do massacre que deu fim à lenda de Lampião. Surge então o Manuel cangaceiro, que passa a ter embates com Corisco sobre as grandezas do “santo” Sebastião e Lampião. É o bloco da violência, quando Antônio das Mortes cumpre a missão de exterminar o último dos cangaceiros.

Eis então que Manuel, liberto de todas as influências, corre em direção à liberdade, que metaforicamente se dá pela conversão do sertão em mar, o emblema de todo o filme, significando uma ansiada mudança da ordem natural das coisas, na qual o povo desbancaria as elites dominantes e assumiria o controle do poder.

Importante observar que a representação de Deus e o Diabo na Terra do Sol tem diálogo espontâneo com o espectador, num discurso que tem o cantador como presença vital. O cantador, no contexto do universo focalizado, é a própria encarnação da tradição, que traz consigo uma relação muito específica com o referencial histórico. E é o cordel (de autoria do próprio Glauber em colaboração com Sérgio Ricardo) outro dos artifícios que o filme se utiliza para demarcar a questão da transformação: vez por outra dá lugar a peças de Villa Lobos, representações de um projeto cultural de um Brasil desenvolvido igualitariamente. Projeto esse que ainda esperamos que um dia se concretize.

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