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Dia de Chuva em Nova York, Um

(A Rainy Day in New York, 2019)
6,5
Média
83 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Manhattan reimaginada

9,0

Nós conhecemos muito bem Manhattan segundo Woody Allen. Poucos diretores produziram um arquivo tão significativo sobre esse lugar quanto ele. É preciso reafirmar, no entanto, que estamos falando de Manhattan, não do Brooklyn de Martin Scorsese e Spike Lee, nem do mais televisivo Queens. Há uma geografia de classe que é muito específica a esse distrito, uma que agencia também questões relativas a religião, raça, gênero, ao espectro político, à formação acadêmica, muito do que podemos reconhecer nos conflitos dos filmes de Allen.

Um Dia de Chuva em Nova York (A Rainy Day in New York, 2019), assim, adequa-se totalmente a essa ideia de Manhattan que vemos com frequência na filmografia do cineasta. Em certo sentido, esse é um lugar dos longos vestidos requintados que escorrem até o chão em uma festa de gala, das telas expostas no Museu Metropolitano, dos revestimentos dos atraentes sofás dos apartamentos habitados pela elite. A Manhattan de Allen tem um tecido e uma textura.

Há um plano no filme em que Cherry Jones, que interpreta a mãe de Gatsby (Timothée Chalamet), está sentada diante do filho em um salão à parte ao fim de sua festa beneficente. A imagem é composta com muita pompa – a cenografia por trás da atriz é tão esplendorosa quanto a sua roupa –, mas o seu relato ressignifica essa bela superfície. É uma qualidade muito rara do cinema essa capacidade de construir uma beleza que nos confronta: que não contemplamos, mas que nos contempla. Um exemplo bruto dessa raridade são os musicais de Jacques Demy – e é algo muito próximo dessa visualidade que aparece aqui.

Ao andar pelas ruas da cidade (são os desencontros perpetrados por essas andanças que levam o filme adiante), os personagens estabelecem cada um uma relação muito diferente com os exteriores. Gatsby, o autoditada sombrio, viciado em apostas, tem uma preferência declarada pela chuva; Ashleigh (Elle Fanning), no entanto, é iluminada de uma forma muito peculiar pelo sol (em alguns momentos, seu cabelo parece mudar de cor); e Chan (Selena Gomez), enfim, parece estar muito à vontade com todas as faces dessa Manhattan por onde circula tão livremente.

O texto do filme é muito inteligente no modo como constrói e nos apresenta essa rede da elite nova-yorkina. Este é um ponto em que Allen já foi particularmente primoroso uma vez antes, na Londres de Ponto Final: Match Point (Match Point, 2005), possivelmente a sua maior obra. E é algo também que aparece no trabalho de outro diretor estadunidense, Whit Stillman, realizador do fantástico Metropolitan (Idem, 1990) que me parece ser, para Um Dia de Chuva em Nova York, a referência mais próxima. Todos esses filmes satirizam a elite ao mesmo tempo que se engajam com suas formas, repertórios, performances, sonoridades e visualidades.

Há todo um imaginário do cinema estadunidense que é difícil de se evitar quando nos engajamos com esse repertório. É muito fácil irmos do quarto de hotel que o casal Gatsby (o seu nome não é, afinal, nada sutil) e Ashleigh dividem brevemente para os salões, clubes e cruzeiros onde se davam os suntuosos números de dança dos musicais de Fred Astaire e Ginger Rodgers. Os filmes de George Cukor também aparecem ali em um lugar próximo; penso principalmente nas idas e vindas dos privilegiados personagens de Cary Grant e Katharine Hepburn circulando infinitamente a mansão moderna e suntuosa de Boêmio Encantador (Holiday, 1938).

Há semelhança na opulência, mas o que Um Dia de Chuva em Nova York coloca em cena vai além disso. Trata-se de pensar a comédia romântica tanto como uma forma cinematográfica quanto como um modo de dirigir o olhar às relações de classe. Poucos filmes recentes de Allen foram tão precisos em suas reflexões. Nas caminhadas por Nova York, sob a chuva ou iluminadas pelo sol, algo fica à mostra sobre o cinema e sobre a identidade criada de um lugar. Em um diálogo entre Gatsby e Chan, esta fala que é preciso coragem para criar algo fora da realidade. Ela reafirma aqui essa Manhattan criada, na história do cinema, na melodia de seus pianos; uma Manhattan de artifício, imaginada nas calçadas e nas telas.

Comentários (1)

Rodrigo Torres | quinta-feira, 21 de Novembro de 2019 - 21:57

Esse texto virou minha expectativa por esse filme. Agora eu tô doido pra ver!

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