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Críticas

Cineplayers

Apesar de ser um filme menos surrealista do diretor, ainda apresenta traços inegáveis da genialidade de Buñuel.

7,0

Raros são os diretores que mantêm uma coerência tão estável em sua filmografia quanto Luis Buñuel, mestre reconhecido mundialmente como pai do surrealismo cinematográfico. Tão ou mais raros quanto são aqueles que, além da coerência, ainda conseguem construir e desenvolver elementos e temáticas semelhantes em cada uma de suas obras, sem se auto-plagiar nem transformar cada sessão de cinema em uma entediante sensação de déjà vu. Aliás, Buñuel passa muito longe disso: a onipresença de temas em seus filmes acrescenta certo charme inigualável à totalidade de sua obra, já que nos transmite uma idéia de complemento, às vezes quase como uma revitalização dos contextos empregados e de sua própria visão acerca do assunto em questão. 

Quando isso não ocorre, o que Buñuel faz é simplesmente desenvolver uma inversão de idéias, subvertendo características a fim de apresentar um novo olhar sobre o mesmo tema. Tomemos como exemplo a paradoxal relação entre Viridiana e A Bela da Tarde, produções de diferentes épocas de sua carreira que, direta ou indiretamente, expõem a sexualidade feminina através da obsessividade humana pelo prazer carnal. Em Viridiana, Buñuel constrói uma personagem frágil, sexualmente reprimida e devotada aos valores cristãos, procurando se abster ao máximo de qualquer referência explícita ao sexo em todo o desenvolvimento da narrativa – no tocante às atitudes da moça, não às de seu tio, dono de uma tara colossal por ela. Enquanto isso, A Bela da Tarde trata da mesma personagem frágil, aparentemente reprimida, porém desligada de qualquer dependência religiosa e que vive sob influência intensa e indiscutível do sexo – afinal, utiliza a prostituição como escapismo da monotonia de sua vida vazia e depressiva. 

Encontrar relações entre suas obras, por sua vez, é algo ainda mais simples - sendo que, se esse fosse meu objetivo, poderia completar todo o resto desse artigo apenas as referenciando. Um dos bons exemplos se localiza no paralelo entre duas de suas maiores obras-primas, O Anjo Exterminador e O Discreto Charme da Burguesia. Ambas trazem como mote a crítica aos valores burgueses, desenvolvendo seus acontecimentos a partir de uma das maiores tradições da classe: a reunião formal entre amigos e casais para o jantar. Porém, é interessante também ver como elas diferem em sua composição, mesmo trabalhando em cima de idéias semelhantes: na primeira, o espectador acompanha as complicações impostas aos protagonistas após o referido ato, quando sofrem imposição espiritual de uma subliminar força, digamos, astral, quase como forma de pagamento de pecados; já na segunda, os problemas que afloram impedem o grupo de consumarem o ato, normalmente quando os indivíduos já estão a postos, prontos para se servir. 

Bem... O leitor mais impaciente deve estar se perguntando: “O que diabos tudo isso tem a ver com Diário de uma Camareira?” Na verdade, não muito. O que é preciso deixar bem claro antes de tratar do filme em questão, principalmente àqueles que estão pouco habituados com a filmografia de Buñuel, é que Diário de uma Camareira corre sério risco de ser considerado um produto “não-buñuelístico”, se analisado de maneira desatenta ou superficial. Desprovido de qualquer conjunto de imagens oníricas e construído acerca de uma linearidade bastante incomum no que tange à filmografia do diretor, a obra apresenta uma história simples, com três atos bem definidos e totalmente explicáveis dentro da própria realidade fílmica – mais incomum, se tratando de Buñuel, impossível. 

Porém, não é preciso muito tempo de reflexão para que possamos chegar à óbvia conclusão de que, obscurecido atrás dessa lapidação cinematográfica aparentemente convencional, está um legítimo trabalho do autor. E o que me dá subsídios para atestar isso? A presença constante, mesmo que de maneira muito mais contida e sutil do que o habitual, de três dos mais inconfundíveis e onipresentes temas da filmografia de Buñuel: a crítica aos valores e costumes burgueses, a obsessão sexual e o anticlericalismo – dois dos quais foram supracitados nos parágrafos iniciais deste texto. 

Diário de uma Camareira trata da história de Celestine, personagem de Jeanne Moreau (de Jules e Jim), uma mulher que vai trabalhar como doméstica na casa de um rico casal – onde também reside o pai da mulher. É um local muito belo, mas povoado por pessoas estranhas com atitudes excêntricas (como o velho, que é obcecado por sapatos e faz com que Celestine coloque certa bota toda noite, enquanto esta lhe presta cuidados). Em um dia qualquer, uma garotinha é brutalmente estuprada e assassinada em um bosque, nos arredores do local, e Celestine passa a suspeitar de um dos criados. A fim de conseguir a confissão do crime, muda-se com ele para uma casa no meio da floresta, e passa a lhe persuadir de todas as formas (tentando, inclusive, utilizar o sexo como forma de chantagem) até que arranje pistas suficientes para entregá-lo às autoridades.

A obra é claramente dividida em duas partes: antes do assassinato e depois do assassinato. Na primeira, que ocupa a maior parte da fita, Buñuel vai desenvolvendo com parcimônia e muita inteligência as personalidades do círculo de personagens, aproveitando a ambientação tipicamente burguesa para implementar críticas às atitudes e ao modo de vida da classe alta, bem como ao grande vazio que percorre o interior dos corpos bem vestidos e alimentados desses “seres superiores”. A patroa, extremamente fria e levemente autoritária, goza dos prazeres da soberania mesmo sendo vítima da infidelidade do marido, como clara demonstração da cegueira proporcionada pela soberba que permeia o (in)consciente dos afortunados, ao passo que o referido homem, um doidivano libidinoso e extremamente tarado, tenta de todas as formas desfrutar do corpo e do sexo da nova empregada. “Se madame não as despede, o senhor as engravida”, afirma a serviçal da casa vizinha, em definição cabal da personalidade do casal.

É interessante como, nessa primeira parte, Buñuel vai apresentando aos poucos pequenos resquícios de suas obsessões cinematográficas sem que, para isso, precise utilizar do surrealismo. A questão da sexualidade, por exemplo, é mostrada com extrema sutilidade, sem qualquer imagem despudorizada, apesar de serem óbvios os olhares do senhorio para o corpo da empregada (e as “cafungadas” em seu cangote também). Aliás, um dos melhores momentos da obra é resultado de um diálogo simples, porém bastante representativo em sua conotação sexual (junto de mais uma das alfinetadas de Buñuel ao conservadorismo cristão). Trato do momento em que a patroa, preocupada por não conseguir satisfazer as necessidades sexuais do marido, pergunta a um padre o que precisa fazer para melhorar sua excessiva “indisposição”. Quando revela que o marido (vejam só) desejava “troca de carícias” por duas vezes em uma mesma semana, a indignação do padre é tamanha que chega a parecer que este havia ouvido, na verdade, uma confissão de assassinato, chegando a alegar que, por se sujeitar a tamanho “sacrifício “, estaria impossibilitada de sentir prazer.

Já na segunda parte, Buñuel passa a desenvolver muito mais a personagem de Moreau, excetuando a crítica à burguesia e transformando o conto em um produto ainda menos referencial ao seu estilo (ao menos ainda mais obscurecido, nesse sentido). Mesmo assim, não deixa de imprimir sua marca através da composição psicológica de Celestine, que passa a possuir menos escrúpulos do que já apresentava antes, e que podiam ser constatados através da leve subordinação, em virtude de sua obsessão pela conquista de uma confissão daquele que suspeita ser o assassino. E é interessante a forma como o diretor constrói certa ambigüidade no desfecho da personagem, já que, ao passo que Celestine começa a utilizar um falso desejo pelo homem para conseguir o que quer, também parece construir uma afinidade ou até um sentimento mais forte a seu respeito, deixando uma impressão de sofrimento após o descruzar de seus destinos. 

Além de todos esses elementos buñuelísticos soltos em meio à narrativa superficialmente ordinária, que lhe conferem um charme interessantíssimo, Diário de uma Camareira possui também outras fundamentais qualidades, desta feita do ponto de vista técnico. A composição de planos e a sutilidade dos movimentos de câmera de Buñuel são belíssimos, emprestando à obra uma sofisticação invejável, que serviria quase como um esboço para o ápice da beleza visual na carreira do diretor, A Bela da Tarde (não apenas pela presença orgásmica da sensualíssima Catherine Deneuve, mas por ser dotado de uma fotografia invejável, acentuando ainda mais o erotismo da fita). Ademais, a película é fotografada em um preto-e-branco fabuloso, sem grandes contrastes e com forte presença de luz, que se funde com a direção de arte para criar uma ambientação burguesa muito bem delineada. 

É verdade que toda essa sutilidade imposta por Buñuel na composição não-surrealista, porém levemente exagerada e exacerbada dos costumes burgueses em meio a uma história dramática e particularmente realista, ainda não é suficiente para colocar Diário de uma Camareira junto às melhores obras do diretor. Entretanto, este filme de 1964, que marcara seu retorno à Europa, depois de vários anos produzindo no México (onde, em minha opinião, fez sua maior obra-prima, o supracitado O Anjo Exterminador, em 1962), é mais uma excelente prova da coerência cinematográfica citada pela pessoa que vos fala nas linhas iniciais desse texto. Afinal, Diário de uma Camareira pode até ser um filme menor de Buñuel, mas não menos interessante de ser visto do que qualquer outra de suas obras, sejam elas primas ou não. A coerência se dá justamente por isso: tudo o que ele produzira resulta, no mínimo, em uma experiência cinematográfica interessantíssima. Eis aqui mais uma prova disso.

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | sexta-feira, 11 de Maio de 2012 - 09:16

Falou muito e falou bonito.
Muito justo com esse menor que comprova: Filmes menores de mestres são melhores que os grandes de muitos.

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