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Críticas

Cineplayers

Do diretor Wong Kar-Wai, se tornou uma espécie de uma primeira parte de uma trilogia involuntária com seus dois filmes posteriores, Amor à Flor da Pele e 2046.

7,5

São muitos os prazeres de se assistir a Dias Selvagens, o segundo filme do diretor Wong Kar-Wai que se tornou uma espécie de uma primeira parte de uma trilogia involuntária com seus dois filmes posteriores, Amor à Flor da Pele e 2046 – Os Segredos do Amor. É o que boa parte dos espectadores de cinema mais tradicionais gostaria de ver nos filmes dele: uma história mais linear, o cineasta mais comedido, sem tanta firula de câmara, personagens mais fáceis de assimilar, tudo isso sem abrir mão da sensualidade e do apuro visual, características do diretor.

Insanamente bela está (sempre esteve) Maggie Cheung (Clean), como uma bilheteira tímida e ingênua de um estádio de futebol que se apaixona pelo cafajeste do pedaço, Leslie Cheung (Felizes Juntos e Adeus, Minha Concubina) – ele é símbolo sexual na Ásia, cantor pop e astro de filmes de ação, especialidade kung-fu. A embalar o amor dos dois está a luz do fotógrafo australiano Christopher Doyle e as tradicionais canções latino-americanas, como Solamente una vez e Siempre en mi corázon, de Ernesto Lecuona.

Mais uma vez, o filme se passa na Hong Kong da década de 60, com visual retrô e deslumbrantes figurinos. Criado por uma prostituta, o playboy Yuddi (Leslie Cheung) é disputado por duas mulheres, mas não consegue se interessar por nenhuma delas. Ambas desenvolverão relacionamentos com outros homens. Lizhen (Maggie Cheung) com o policial das redondezas e Mimi (Carina Lau) com o melhor amigo de Yuddi. Nenhum desses amores se completará, pois no universo de Wong Kar-Wai amar é isso: nunca satisfazer completamente o seu desejo, daí a eterna sensação de incompletude.

Está tudo lá: a câmera lenta, personagens apoiados em muros e paredes, a fumaça de cigarro, ventiladores, cortinas; a chuva; as elipses narrativas, imagens ligadas à natureza etc. Era um autor surgindo, ainda sem a maturidade posterior, mas com o universo já pronto. A segunda namorada de Yuddi reaparece no início e no final de 2046. Até o quarto que Yuddi fica hospedado nas Filipinas, quando está à procura da verdadeira mãe, tem o número de 204.

Vendo Dias Selvagens, a impressão que fica é que Wong Kar-Wai caminhou em direção ao cinema clássico. Sua mistura de policiais, gângsteres, femme fatales, viajantes, assassinos, desgarrados e gente perdida na vida tinha um quê de filme policial noir, com algumas cenas de ação, ambientação enérgica e suja nos seus primeiros filmes, em especial Amores Expressos. Neste Dias Selvagens, tem uma cena coreografada de assassinato e massacre.

Kar-Wai, a partir de Felizes Juntos, abandonou essa mise-en-scene e mergulhou no inferno intimista da infelicidade amorosa. Parte dessa visão clássica vem na nostalgia da Hong Kong dos anos 60. Kar-Wai nasceu em Shangai, em 1958, e se mudou para Hong Kong aos cinco anos, com a família. Segundo conta em entrevista para a revista The Independent, Shangai era bastante moderna na época e Hong Kong parecia perdida no tempo, ainda bastante primitiva. Com a Revolução Cultural da China, houve uma mudança brusca na vida dos chineses, tempos de fome, perseguição e pobreza. Daí a visão romantizada que o cineasta tem dessa cidade, nessa época específica. O modo como ele vê a cidade é como um filme das antigas, comédias românticas açucaradas, de uma Hollywood que se perdeu no tempo. Ele transporta seus personagens quase cínicos e torturados para esse paraíso sensorial.

Dias Selvagens, por fim, revela o quão grande é Amor à Flor da Pele, sua obra-prima, quando já havia apurado o estilo e lançado sua revolução estética, praticamente abolindo o roteiro (trabalha hoje apenas com improvisação e criando uma narrativa na sala de montagem), estilização completa, irreal e beirando o maneirismo, sua visão nada positiva do amor. Seus seres solitários buscam o amor e se dão mal, mesmo se o encontram, pois nunca se sentirão completos. Tampouco podem escapar da armadilha, estão condenados a amar e serem solitários para a eternidade.

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