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Dias Sem Fim

(All Day and a Night, 2020)
7,1
Média
7 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

De quem somos prisioneiros?

7,0

Numa noite aparentemente comum em Oakland, um jovem negro dentro de um carro esboça rimas para um rap que diz “não somos iguais se vamos por aí matando pretos”. Em seguida, o personagem é conduzido em um belo plano sequência noturno que lhe permite esconder-se pelas fendas de um bairro residencial aparentemente calmo, até finalmente chegar à casa de sua vítima.

Ao começar Dias sem Fim (2020) a partir desta cronologia reversa, Joe Robert Cole, um dos roteiristas de Pantera Negra (2018), pretende não apenas revelar como o protagonista chegou até a tomada da decisão fatal, mas preparar o espectador para todo o trajeto que será percorrido para o desenvolvimento da personalidade desse jovem até finalmente chegar a esta noite.

Essa viagem será conduzida pelo próprio Jakhor, personagem vivido pelo brilhante Ashton Sanders (Moonlight: Sob a Luz do Luar, 2016), que se transforma em narrador reflexivo sobre não somente a sua própria condição, mas a de vários outros jovens negros nos Estados Unidos que têm os seus futuros enjaulados por um sistema historicamente racista, como muito bem expõe Ava DuVernay em A 13a Emenda (2016).

Apesar de Cole ressaltar, em diversos momentos, o quão perturbador pode ser a prisão para a mente de qualquer ser humano, o filme alcança camadas narrativas mais profundas quando dialoga com Charles Burnett e coloca seu relato próximo a O Matador de Ovelhas (1977), no seno de uma família negra e pobre americana com todas as dificuldades que emergem desta condição que a sociedade em que vivemos faz parecer inata.

Guiados por este narrador em primeira pessoa adentro de vários flahsblacks, entendemos que os seus motivos vão muito além de uma guerra territorial de gangues. Durante toda a sua vida, Jakhor viveu no limite de uma linha invisível e automaticamente dimensionado pela cor da sua pele entre o bem e o mal, ou para ser mais preciso, entre liberdade e prisão. Sua paixão pelo rap se mostra como a única possibilidade para escapar dos atributos aleatórios dessa condição, tanto é que se esforça para conseguir produzir sua própria música, estabelece uma certa distância de seus amigos gangsters, além de começar uma relação amorosa com Shantaye, personagem vivada por Shakira Ja'nai Paye, que lhes brinda com uma gravidez.

Apesar disso, Jakhor espelha os comportamentos de seu pai, vivido por Jeffrey Wright, viciado em cocaina e extremamente violento. Ainda que esta figura paterna represente uma ameaça constante na vida do protagonista, graças ao seu caráter explosivo maximizado em uma cena fortíssima de espancamento ao pequeno filho por não haver reagido “apropriadamente” a um problema com um colega na escola, as cicatrizes formadas por esta relação parecem formar mais o caráter do personagem principal que o esforço de sua mãe, vivida por Kelly Jenrette, em tentar colocá-lo nos eixos.

A busca pela compreensão dessas feridas levará o protagonista a percorrer um caminho similar ao de Pedro Parrámo, personagem do clássico homônimo da literatura mexicana escrito por Juan Rulfo, na busca de seu pai no inferno alegorizado no velho povoado fanstasma de Comala, e materializado aqui no sistema penitenciário norte-americano. Condenados a esse espaço cuja única motivação é a sobrevivência, pai e filho vão tentar contornar o destino da família buscando distanciar-se do azul do uniforme penitenciário que lhes aprisiona e aproximar-se dos cabelos rosados de Delanda, mãe de Jakhor que os ampara.

A sensação que fica é que o filme se aproxima perigosamente de uma solução eugênica para o roteiro. A direção escolhe ir de cabeça numa perspectiva genética que determina as atitudes do protagonista a reproduzir uma espécie de condição biológica herdada pelo pai, esquecendo uma questão muito mais profunda que diz respeito às razões sociais e políticas que levam os negros a ocuparem boa parte das prisões nos Estados Unidos (e no Brasil).

Esse conflito mal-acabado gera uma contradição que reduz a potência que o longa vinha construindo. Dias sem Fim estrutura-se, portanto, como um drama muito mais violento do que denso, um filho imaturo de Moonlight (2016), com suas virtudes, mas ainda longe de andar com suas próprias pernas.

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