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Críticas

Cineplayers

Cinema, jantares e travessuras.

9,5

Alvo de críticas por parte de muitos artistas ao longo dos anos, a alta sociedade e seus tipos mesquinhos, egoístas e interesseiros já estiveram na fogueira do cinema em muitos filmes que destacam esse mau caratismo que vem da exploração dos pobres e da hipocrisia moral e religiosa. Talvez decididos a expor isso ao mesmo tempo em que mostravam ao mundo sua indignação com tamanha futilidade, diretores como Godard e Antonioni focaram boa parte de suas respectivas obras em desmoralizar a burguesia. No entanto, foi o espanhol Buñuel e seu senso de humor ácido que encontrou na comédia e na fantasia uma maneira de atingi-la através de um caminho alternativo e um pouco mais divertido: a humilhação.

Para entendermos tudo, temos que começar pelo jantar. Qual jantar? Aquele tão combinado por seis amigos ricos, que aparentemente não tem absolutamente nada de melhor para planejar. Eles agendam o evento, mas parece que nunca conseguem concretizar o jantar da maneira esperada, sendo sempre interrompidos por situações absurdas que insistem em acabar com aquilo. Mas eles não são de desistir ou se abalar, até porque isso seria abdicar de todo propósito de suas pequenas vidas, então o enredo deste filme é basicamente composto por uma série de tentativas frustradas de realizar uma refeição entre companheiros entediados.

A tática de Buñuel aqui é manipular tanto seus personagens quanto seu público, com um argumento que beira a pura galhofa. Desde o começo, ele nos vende essa idéia de que o tal jantar é o foco de tudo e que precisamos torcer por ele, e que a trama vai decolar e mostrar a que veio somente a partir disso. Logo fica evidente que não há uma preocupação em fazer da refeição entre amigos uma metáfora com alegorias sociais e críticas mordazes, uma vez que o jantar é somente um jantar e isso por si só já deixa clara a superficiaidade em que tudo transita de forma proposital. 

Começa então o joguinho aparentemente sem rumo do diretor, que se revelará no fim de tudo um belo tour de exposição vexatória. Ele brinca com nossa percepção ao interromper a linearidade da trama com algum personagem acordando assustado, dando a entender de que tudo que vimos até então foi apenas um sonho esquisito. Em seguida, ele começa tudo do zero e introduz de novo uma história simples de amigos combinando de jantar, para novamente serem interrompidos por fatores além da compreensão - e paciência - de qualquer um.

Personagens propositalmente carentes de profundidade guiam essa brincadeira com muito humor e charme. Aliás, o charme de todos eles diante dessa enxurrada de devaneios é o que chama mais atenção. Enquanto nós ficamos perplexos diante de tamanha loucura, os amigos burgueses parecem não se impressionar com nada. Aparecem soldados traumatizados, policiais corruptos, padres assassinos (uma discreta prensada na Igreja), lendas fantasmagóricas, entre outras representações dos horrores da vida real, para tirá-los da monotonia, mas nenhum com muito sucesso. O objetivo deles é o jantar e nada mais importa: a vida deles se resume nisso. O males que cercam aquela bolha de luxo e alienação não são capazes de comovê-los ou movê-los a olhar além do próprio umbigo. 

A estrutura repetitiva e aparentemente sem rumo narrativo acaba por refletir bem a falta de propóstio concreto na vida dos seis amigos, que apesar de usarem drogas, adulterarem, matarem e assim por diante, nunca se revelam satisfeitos ou fora desse transe constante. Eles são blasé - preconceituosos com os pobres, passam por cima de leis, subornam autoridades e traficam drogas de maneira sempre metódica e impessoal. No fim, a única coisa que mexe com eles é o acordar dos sonhos, momento de “fraqueza” em que se mostram assustados, como se a sombra de uma consciência social pós pesadelo os atormentasse brevemente antes de se esvair. 

Os recursos para manter a narrativa interessante são muitos. Primeiramente, Buñuel escolheu a comédia como gênero principal, torando cômicas todas as situações absurdas. Depois, ele nunca abusa do onírico em sua temática de sonhos, já que isso poderia causar ainda mais confusão na mente dos espectadores, e fugiria da sua intenção de fazer tudo parecer concreto e verossímil. A lógica é construir para em seguida derrubar: nos faz acreditar em situações improváveis para depois nos fazer cair na real, como se estivéssemos acordando do sonho junto com os personagens. Apesar de isso ir se repetindo diversas vezes, parece que ele sempre consegue nos pegar e, de repente, estamos novamente imersos na diegese daquele universo e procurando lógica para tudo aquilo – até que ponto foi real e a partir de que momento começou a se desenrolar um sonho. Resta se render e juntar as peças do quebra-cabeça e torcer pelo bendito (ou maldito?) jantar acontecer.

O que une todas as tentativas dos personagens em fazer uma simples refeição é uma sequencia que se repete entre os atos, de todos os personagens andando em uma estrada rumo ao nada. Eles caminham um ao lado do outro, arrumados em belos trajes, olhando fixamente para frente, batendo os pés e nunca chegando a lugar algum. Não perdem a pose, não transpiram, não reclamam. Apenas continuam, indiferentes ao sol escaldante e à estrada infinita: prontos para o próximo delírio coletivo, em direção ao próximo jantar, nesse ciclo sem fim que se resume a uma busca pela concretização, por algo que não seja tão frágil e efêmero quanto um sonho. 

Mesmo com o ácido insulto à alta sociedade escondido por trás de toda a brincadeira, não tem como encarar este trabalho como um filme pesado. Diferente de O Anjo Exterminador (El Ángel exterminador, 1962), uma produção também crítica e surreal, esta obra é um bem humorado ensaio sobre o tema. Isso impede que tudo se torne muito sombrio e sisudo. Podemos entender então como sendo uma travessura de Buñuel, que manipula seus espectadores com tamanha habilidade ao nos vender esse conceito do jantar inútil como algo catártico. Nota-se a diversão dele em criticar a elite ao mesmo tempo em que brinca com nosso senso de realidade. No fim, resta a sensação de ouvir a risadinha sapeca e provocativa do cineasta, como uma criança maldosa que sabe ridicularizar na mesma medida que se diverte com sua vítima.

Comentários (10)

Jairo Simões | segunda-feira, 26 de Outubro de 2015 - 09:49

Assisti ontem e gostei bastante! Achei fantástico a crítica a religiosidade hipócrita das pessoas colocando o padre como jardineiro... Mostrando que muitas pessoas usam a religião apenas para dar uma de bonzinho para os outros, mas no fundo são podres, pecadores como qualquer um. O jardim representa a visão externa das pessoas, assim como é a visão externa da casa. Uma casa que tem um jardim bem cuidado passa um boa impressão.

Jairo Simões | segunda-feira, 26 de Outubro de 2015 - 09:51

Ótimo texto, Heitor! Contribuiu para ampliar minha visão sobre o filme. Parabéns!

Taumaturgo Moura | terça-feira, 15 de Agosto de 2017 - 00:54

Bela crítica Heitor, e imaginar o quanto enrolei para assistir esse Filmaço do Bunuel. a sensação que tive depois de velo foi como ter levado um Soco na Boca do Estomago.

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