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Críticas

Cineplayers

Cinema brasileiro comercial e de qualidade.

6,0

Ora, ora, e não é que o cinema brasileiro, quando quer, sabe ser comercial, sem por isso perder a qualidade?

A mais recente prova disso é Divã, adaptação para a tela grande da peça de autoria de Marcelo Saback (feita por ele mesmo), que por sua vez era livremente inspirada no romance da jornalista Martha Medeiros. O filme aproveita a trilha aberta pelos recentes êxitos de bilheteria alcançados pelas comédias dirigidas por Daniel Filho, e investe numa temática contemporânea, mais voltada aos problemas da classe média brasileira. A diferença é que, ao contrário da série Se Eu Fosse Você, em que o humor se justifica por si só, Divã traz uma humilde, sincera e até mesmo intensidade nos conflitos que expõe na tela.

Divã aborda a vida de Mercedes (Lília Cabral). Ela tem 40 anos e está casada com Gustavo há mais de 20. É mãe de dois meninos. Trabalha como professora particular de matemática, o que a permite ter mais flexibilidade de horários e mais tempo livre pra se dedicar à pintura, sua grande paixão. Por fora, leva uma vida aparentemente feliz, no sentido tradicional da palavra. Por dentro, algo a incomoda, uma angústia invisível, silenciosa e sem explicação. Pode estar relacionada à sua entrada na idade da loba, com todas as conseqüências que isso traz ao universo feminino, como a proximidade da menopausa, as neuroses com a vaidade, o afastamento dos filhos e a própria noção de finitude.

Por outro lado, ela não descarta que esse mal estar também pode ter origem num desejo por maior proteção, uma necessidade de se abrigar no colo dos pais e, quem sabe de lá, encontrar as respostas para todos os dilemas do mundo. Mercedes procura um psicanalista. Marinheira de primeira viagem, pensa que o profissional deve ter a solução para os seus conflitos. Sentada sobre o divã, tímida no princípio, mais solta à medida que as sessões avançam, ela destrava a língua e, por mais clichê que possa parecer, começa a sua viagem em busca do autoconhecimento.

Quem conhece as crônicas de Martha Medeiros já tem uma idéia do que Divã tem a oferecer. Seus textos são rápidos (sem serem superficiais), irônicos (mas não debochados) e de fácil leitura (mas que provocam a reflexão). Sua temática principal varia entre a feminilidade, as artes em geral, e o cotidiano, sempre de um ponto de vista contemporâneo e moderno. Os trabalhos de Martha são incrivelmente atemporais. Mesmo as coletâneas de suas crônicas mais antigas, como Topless (1997), Trem Bala (1999), Non-Stop (2001) e Montanha Russa (2003), não perderam em nada do vigor da época do lançamento. Não é diferente com Divã.

Lançado em 2002, Divã é o primeiro romance de Martha. Romance atípico, diga-se. A estrutura assemelha-se a uma série de crônicas, encadeadas em sequência, em que a autora, por trás da pele da personagem Mercedes, expõe sua visão de mundo. Com isso, a narrativa torna-se um longo monólogo de sua alterego ao terapeuta. Martha não dá vida aos demais personagens que rodeiam a vida de Mercedes. Nós só os conhecemos por via reflexa, através das palavras dela.

O roteirista Marcelo Saback foi esperto ao perceber que, se esse modelo podia ser aproveitado na transposição para o teatro, o mesmo não se podia fazer na adaptação para a tela grande. Cinema se faz com imagens e não com discursos. As confissões de Mercedes logo se tornariam cansativas, e o filme perderia contato com a platéia nos primeiros 15 minutos de projeção.

Para tirar a câmera de dentro da sala do terapeuta, Saback teve que dar vida e voz aos demais personagens. Existia aí outro desafio: o livro é construído inteiramente no discurso indireto. Saback, então, resolveu manter as sessões de terapias como a espinha dorsal do filme, usando-as como gancho para a entrada das demais sequências ambientadas fora dali. Para tanto, ele pinçou do livro as situações que melhor retratavam sua protagonista, tanto do ponto de vista dramático quanto cômico, e, em torno delas, criou os diálogos e as piadas visuais. Tudo isso sem trair o espírito do livro.

A maior prova de que Saback foi bem sucedido nas soluções destes desafios é a facilidade e rapidez com que Divã cativa seu público. Contribui para isso a opção de não se revelar o rosto do terapeuta. Dele, só sabemos o nome: Lopes. Exibido de costas para câmera, ele passa a integrar o público do cinema, como se fosse o espectador sentado na poltrona à nossa frente. Com isso, ficamos com a ilusão de que a personagem de Mercedes não está mais falando com o psicanalista, mas sim com cada um de nós, como se o escurinho do cinema assumisse a aura de um confessionário. Sentimos que ela nos considerou importantes a ponto de nos confidenciar suas angústias sobre o casamento, os filhos, e o mundo de forma geral. É tamanha a confiança em nós depositada, que logo temos interesse em ouvir suas histórias e a torcer por aquela mulher.

Além da estrutura do filme, é claro que grande parte da empatia produzida por Divã vem do talento de Lília Cabral. Apesar de ser reconhecidamente uma grande atriz, ela nunca foi considerada – ao menos, na televisão – daquelas de primeiro escalão. Divã pertence à Lília. Muito embora possa se considerá-la um pouco velha para o papel – afinal, ela já ultrapassou a casa dos 50 anos – a atriz nos convence inteiramente com seu estilo espontâneo, sincero e humano. Ajuda muito o fato de Lília Cabral ter um rosto comum. Ela não é particularmente bonita, mas está longe de não ser uma mulher desejável. Tivesse ela entrado na lista daquelas atrizes que se deixaram seduzir pelas tecnologias da medicina estética, a credibilidade da sua Mercedes cairia por terra.

O restante do elenco também dá conta do recado. José Mayer, como Gustavo, o marido de Mercedes, deixa de lado sua imagem televisiva de “coroa-conquistador” para mostrar um pouco visto timing de comédia. Reynaldo Gianecchini revela que, desde sua estréia no cinema, em Avassaladoras,  melhorou muito como ator. Mas não seria justo não destacar deste grupo a interpretação de Alexandra Richter. No papel de Mônica, a melhor amiga de Mercedes, ela quase rouba o filme. Richter acerta em cheio no retrato de uma mulher que é um misto de perua e dondoca, mas que no fundo não passa de uma pessoa convencional e que acredita nos valores tradicionais da família e do casamento. O sucesso da segunda metade de Divã, claramente mais dramático que a primeira (não estranhe se você ouvir o choro contido de alguns espectadores ao seu lado), vale-se imensamente da atuação dessa atriz.

Divã também demonstra uma evolução de José Alvarenga Jr., diretor que parece nunca ter querido alçar vôos maiores na carreira. Entre os anos 1980 e 1990, ele se limitou a dirigir alguns filmes para Renato Aragão, e produções para a televisão (como Você Decide, Sai de Baixo e A Justiceira). Em 2003, deu um salto de qualidade com a versão para o cinema de Os Normais, mas que ainda se ressentia de um indisfarçável formato televisivo. Ao contrário do que se esperava, pelos três anos seguintes Alvarenga permaneceu ligado à TV, dirigindo episódios da série Os Aspones, Minha Nada Mole Vida e A Diarista. Com Divã, ele conseguiu voltar para a tela grande, mas desta vez com resultados muito mais promissores. Os planos são mais elaborados e abertos (as nuvens cinzas e ameaçadoras que molduram a conversa entre Mercedes e Theo no topo de um prédio) e a fotografia tem maior função dramática (a protagonista, nua, tomando chuva na janela).

Divã encontra um bom equilíbrio entre o dramático (sem ser piegas) e o cômico (sem ser pastelão). Há muitas sacadas inteligentes (como a vendedora que fez inúmeras plásticas no rosto e o cabeleireiro gay de Mercedes) e várias gags visuais que funcionam (a sequência da discoteca). A visão de mundo de Mercedes é realista. Não vê problemas em se masturbar mesmo tendo um parceiro fixo (“O Mel Gibson sempre estará lá para me ajudar”). Acha que a infidelidade no casamento é algo inevitável (“o celular de Gustavo ainda vai tocar muitas vezes. Deixa tocar”). E, mesmo separada, tem a serenidade suficiente para valorizar os bons momentos que viveu ao lado do ex-marido.

Definitivamente, Divã entrega muito mais do que promete.

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