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Críticas

Cineplayers

Fantasia que não convence.

3,0
Certas (ou diversas) obras da literatura são consideradas inadaptáveis até que se prove o contrário. Os seguidores de Tolkien, por exemplo, bateram firme o pé antes que Peter Jackson levasse à frente a tarefa quase sobrenatural de levar para as telas a trilogia Senhor dos Anéis com o esmero que conhecemos; Ensaio Sobre a Cegueira arrancou lágrimas de seu autor original, o finado José Saramago, mas ainda divide os que admiram sua obra literária e enxergam no filme de Fernando Meirelles uma prova sobre como não levar uma história humanamente tão complexa adiante; e podemos carregar este pensamento até mesmo para o âmbito das HQs, tomando como principal exemplo as insatisfações de Alan Moore com as versões cinematográficas de seus V de Vingança e Watchmen; dessa forma, Hollywood caminhou entre adaptações bem sucedidas e outras fadadas ao fracasso, enquanto transformava as páginas dos livros em materiais ricos para levar até a tela grande.

Como a diretora premiada e ovacionada que é, Ava DuVernay (de títulos poderosos como Selma - Uma Luta Pela Igualdade e o documentário A 13° Emenda) poderia levar adiante o projeto que quisesse e bem entendesse, e por mais que sua escolha tenha sido dar vida à primeira parte da saga multidimensional de Madeleine L’Engle iniciada em 1962 com Uma Dobra no Tempo, o estranhamento inicial deu lugar a compreensão quando Ava passou a dar seus toques particulares de diretora negra para uma produção de grande orçamento, transformando a protagonista numa menina negra e escalando Mindy Kaling (a Nojinho de Divertida Mente) e ninguém menos que Oprah Winfrey em posições coadjuvantes de luxo, fazendo companhia a Reese Whiterspoon (de Legalmente Loira, Livre e vencedora de um Oscar por Johnny & June). Havia, é claro, a esperança de ver uma diretora com um nome de peso subverter aos seus moldes uma produção da tão correta Disney, tendo como base um material mitológico e fantástico datado dos anos 60. A oportunidade estava nas mãos.

A palavra-chave que parece definir o resultado de Uma Dobra no Tempo, então, é o desconforto. Se nesse meio houve também a dificuldade de levar a mitologia da série de livros de L’Engle para fora das páginas é algo que não posso afirmar, já que não li o material, mas a impressão que permeia os quase 100 minutos do filme de DuVernay é de que há zero afeição com o que está sendo transposto e, naturalmente, o estranhamento com o que está sendo desenrolado na tela é iminente. O ponto de partida básico para qualquer fantasia familiar, por sinal, passa longe de ser mais um dos problemas de Uma Dobra no Tempo, onde acompanhamos a menina Meg (Storm Reid), o irmão Charles Wallace (Deric McCabe) e o amigo e naturalmente interesse amoroso Calvin (Levi Miller) que buscam o pai desaparecido há quatro anos, o astrofísico Alex Murry (Chris Pine), que se perdeu numa viagem do espaço tempo e agora será procurado pelas crianças com a ajuda das extravagantes Sra. Wich (Winfrey), Sra. Who (Kaling) e Sra. Whatsit (Whiterspoon).

De plasticidade excessivamente exuberante quando o cenário do mundo real é trocado pelas gigantescas paisagens coloridas e mal fundidas ao chroma key (a interação do elenco com os efeitos digitais é visualmente agressiva aos olhos), o roteiro de Jennifer Lee (do irresistível Frozen - Uma Aventura Congelante) é o primeiro dos culpados quando se trata de estabelecer o universo imaginado para o público e, pior ainda, de conferir algum sentido ou coesão para a linha de acontecimentos da narrativa, o que para uma fantasia, é um tremendo tiro no pé. Se na abertura a roteirista já tropeça quando assume a relação entre pai e filha e seu posterior sumiço numa velocidade alarmante para que consigamos construir algum vínculo com a situação (e reparem em como o subplot de bullying com Meg é prontamente ignorado assim que se faz presente) e compreender a disfunção que tomou conta daquela família, sobra pouquíssimo para que Ava trabalhe com sua imaginação (não que a própria pareça ter alguma vontade para isso também) quando a ambientação daquele universo através de diálogos que apoiam em demasia na crença do público sobre as oportunidades que a magia que toma conta do cenário oferece, e como resultado, não apenas o deslumbramento pelo que acompanhamos é abalado, como o incontável número de frases piegas que o elenco é obrigado a proferir ou as citações pelas quais a Sra. Who se comunica se tornam imediatamente irritantes.

E sem um material sólido o suficiente para encontrar seu próprio tom, Ava se perde em tentativas de conferir alguma personalidade própria ao que comanda, ora infantil, ora espiritualista, ora adotando um surrealismo imaturo que emula da pior forma a confusão entre sonho e realidade que acompanhamos nos filmes de David Lynch, por exemplo. A diretora não sabe como enriquecer visualmente sua história, que oferece todas as oportunidades para isto, mas se contenta em ser ou colorida ou escura demais quando lhe é conveniente, em mais uma crença enganosa no deslumbramento do público. A exploração é rasa e fragilizada, algo totalmente contrário em relação ao pulso firme da diretora em produções passadas.

Assim sendo, nem mesmo para o elenco existe algo substancial para ser trabalhado, e diante da completa falta de empatia e despreparo do elenco infantil (é inacreditavelmente bizarro quando o pequeno Deric McCabe se vê obrigado a assumir ares de vilão), se torna fácil para Chris Pine parecer o ator mais completo do mundo. Para o trio Winfrey, Kaling e Whiterspoon, é compreensível a aceitação em estrelar o projeto diante do empoderamento e protagonismo feminino que a trama oferece, e por mais que Oprah e Reese estejam corretas na tarefa, seus textos são igualmente medonhos e mal articulados, e para Kaling, sobra a tarefa ingrata de levar 80% de seu trabalho adiante com caretas e sorrisos que denunciam o espírito saturado da adaptação. É o tipo de trabalho que, provavelmente, grande parte dos envolvidos carregou nas costas com cansaço.

Sem qualquer bom aproveitamento de seus elementos básicos de fantasia (e quando tenta, apenas se torna ainda mais risível, como a Oprah gigante), Uma Dobra no Tempo poderia ter se encaixado na filmografia de Ava Duvernay como uma nova proposta para seu cinema de representatividade, mas a má vontade que rodeia cada frame do projeto derruba qualquer ponto de vantagem que certamente há por detrás do que vemos. Ou, simplesmente, alguns livros são apenas inadaptáveis mesmo.

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