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Críticas

Cineplayers

O horror sem bolas.

2,0

O cinema vive de infiltrações, de ecos e intercâmbios. Uma opção de estilo de Siodmak na década de 40 pode reverberar ainda hoje ou amanhã (Tarantino vem fotografando lindamente este processo). É a essa cascata de acontecimentos aleatórios (presente de alguma forma em todos os seus níveis) que alguns filmes devem sua existência. Mario Bava, ao inventar o giallo em 1964 com Seis Mulheres Para o Assassino (Sei Donne Per l'Assassino, 1964) (buscando por sua vez em Tourneur e Hitchcock a referência para apontar toda a noção de horror que temos hoje), inventava também a sedução através da morte no cinema. As cores, o balé da lâmina no ar e os movimentos de câmera dotados de uma elegância quase paradoxal diante do propósito para o qual eram executados conferiam ao ato de matar um atributo estético inimaginável até então. Bava desafiava o público, pela primeira vez, a enxergar beleza na violência (Argento discorreu a respeito alguns anos mais tarde, em Prelúdio Para Matar [Profondo Rosso, 1975]).

Dez anos mais tarde, Bava resolveu subverter a si mesmo (e ao monstro que havia criado). Em Rabid Dogs (idem, 1974), o italiano extrai todo possível artifício visual que maquiasse ou alterasse de alguma forma a violência em estado bruto vista na tela, feito uma fratura exposta. O desafio ao espectador, desta vez, é ainda maior: apreciar esta violência apesar de sua nudez; assistir e divertir-se com um filme que não oferece qualquer respiro estético como desculpa para ser apreciado. Apenas o horror (a respeito disto falou Ruggero Deodato no belo e incompreensível Holocausto Canibal [Cannibal Holocaust, 1980]). É só por causa desta sequência de rupturas, invenções e reinvenções que A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978) veio a ser filmado (e por consequência, é claro, seu remake).
 
A diferença que define todas as outras entre Doce Vingança (I Spit on Your Grave, 2010) e A Vingança de Jennifer é objetivamente mensurável: 30 anos de peregrinação do horror no cinema. Se o filme de Meir Zarchi é fruto daquela safra setentista regada a décadas de perversão represada, Doce Vingança nasce em uma pós-efervescência do gênero já em solo americano. Passa o desenvolvimento frenético do terror ianque nos anos 80, do slasher e camp movies, absorve uma ou duas referências dos mockumentaries, do terror-cereal de Lenda Urbana (Urban Legend, 1998) e Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado (I Know What You Did Last Summer, 1997), respira generosamente o sopro já meio datado deixado pelos torture porns de metade da década passada, e chega até aqui, em pleno 2011, como um filme inútil sem identidade, uma colagem de retalhos do horror made in USA que já havia por sua vez sido copiado de italianos e japoneses.

A Vingança de Jennifer tem seu estilo construído pela falta de estilo; sua estética desenhada pelo completo desleixo para com qualquer recurso estético. A narrativa é maravilhosamente precária, quase ausente; um filme montado em dois blocos: “estupro” e “vingança”, cada ato auto-explicativo assim mesmo. É essa crueza toda e esse deserto de artifícios, naturais em qualquer filme (mesmo no mais bagaceiro dos exploitations), que faz de A Vingança de Jennifer uma experiência válida, e é talvez a falta de pretensão de Meir Zarchi (ou de habilidade, pouco importa)  que faz dele, acima de tudo, um bom filme sobre a violência e essa desafiadora ideia de comê-la crua.

Doce Vingança, em contrapartida, veste-se displicentemente com os farrapos de subgêneros deixados pelos seus antecessores ao longo dos anos. Do suspense, as sequências em que Jennifer caminha no escuro sob uma trilha soturna; de Jogos Mortais (Saw, 2004) e suas crias, os esquemas engendrados por ela para torturar seus agressores; do terror sobrenatural, as marcações de paranormalidade e assombração; do horror adolescente dos anos 90, o crime seguido pela perseguição e pela tensão da fuga, corrida pela eliminação dos vestígios (aliás Monroe ensaia algo que teria salvo Doce Vingança [apesar de eu duvidar que ele mesmo tenha percebido]: a troca de posições após o estupro, deslocando o espectador da perspectiva da vítima para dentro da dinâmica do grupo de amigos, transformando Jennifer na vilã).

Cada cena, que no original era primitiva e mesmo carente dos signos mais simples da linguagem cinematográfica, é fantasiada com o que restou de um cinema que o próprio A Vingança de Jennifer ajudou a influenciar. As duas cenas do estupro anal estabelecem bem essa diferença. Enquanto que Zarchi simplesmente finca uma câmera no chão e a esquece diante de uma pedra onde Jennifer é posicionada de quatro, nua e aos berros, Monroe utiliza de toda forma de trucagem (uma variedade surpreendentemente ampla das tosquices possíveis com uma câmera) para esconder a ação.

Como já disse no texto sobre Deixe-me Entrar (Let Me In, 2010), remake que repete o original já perde sua razão de ser, mesmo porque não creio ser possível realizar um exploitation hoje sem escorregar para um mero pastiche (do mesmo modo que não é possível filmar um western ou um film noir), portanto não serve de argumento para condenar Doce Vingança o fato de ele embrulhar o roteiro de Zarchi em um papel-presente cafona, porque já era esperado que o fizesse. O problema é a fragilidade com que esses elementos são flexionados, a falta de olhar criativo sobre o material original e, acima de tudo, a alarmante falta culhões de um diretor jovem.

Tudo isto parece criar para Doce Vingança uma estranha ilusão quanto aos seus rumos e a suas liberdades em relação ao filme de Zarchi. Se Monroe pensa estar sendo criativo ao enriquecer aparentemente o rol de crueldades do filme original, e se pensa que com isto está sendo mais extremo, mais gráfico e mais chocante, precisa rever seu filme incrustado nesse contexto, como produto de uma longa equação fílmica.

Se a violência em quantidade supera em muito a vista em A Vingança de Jennifer, sua intensidade é sempre anestesiada pela pegada insegura de Monroe, pela sua queda irresistível em emplumar cada sequência (até pelo olhar do espectador já bem amortecido em relação àquele da década de 70). Não sei o que se passou nos bastidores da produção, mas cito o nome do diretor apenas para simplificar o raciocínio a seguir. Pegue um elemento em particular, novo em relação ao filme original e enfocado desde o começo com suspeita insistência: a filha do policial. Além de cumprir uma função a princípio interessante na composição desse personagem (ausente do filme de Zarchi), ela tem (ou teria, supondo pela sequência lógica da construção do roteiro) um papel muito importante como arremate final no plano megalomaníaco de Jennifer, requinte de crueldade e, aí sim, atestado de coragem em um contexto de cinema onde, se já é quase impossível ser transgressor, ainda resta o benefício da contravenção.

Doce Vingança se esquiva dessa responsabilidade e se resigna tranquilamente na vala de um cinema descartável, tanto que comete o absurdo de reutilizar um personagem já morto para tomar o lugar da criança e evitar um desafio mais sério ao seu público. A câmera sente-se segura o suficiente para focar uma máscara de látex e litros de tinta vermelha, mas teme captar um mamilo que seja de Sarah Butler.

A violência tão extremada, tão gráfica e espetacular, não passa de uma cócega. Doce Vingança ao final de contas, com todos os seus estupros, seus pintos castrados, olhos comidos e rostos derretidos em ácido, é um filme cor-de-rosa para garotinhas saltitantes.

Comentários (3)

Rodrigo Torres | segunda-feira, 30 de Abril de 2012 - 14:17

Hahaha, comentário tão bom quanto a crítica. (Sem deboche, o primeiro relevante, a segunda, ótima)

Cristian Oliveira Bruno | segunda-feira, 25 de Novembro de 2013 - 16:56

A Vingança de Jennifer é um puoco melhor, mas os dois são ruins.
A cena do estupro (do primeiro) é ousada mas sem graça, sem tensão ou violência repugnante que tal ato deveria causar. Os dois são dispensáveis.

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