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Críticas

Cineplayers

O caminhar incerto em solo abrupto.

8,0

O desemprego poderia ser o tema de discussão desse filme Dois dias, uma noite, dirigido pelos irmãos Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, mas há algo mais sendo explorado nos pormenores do roteiro afinado a singularidade de um único personagem desafiando a cobiça alheia. Também fala de depressão, de recuperação, mas não de uma maneira convencional e romantizada, mas de forma genuína, estudada, cuidadosa. Funciona em diversos aspectos. O ritmo ameno é uma constante. Pouca coisa acontece. Apenas seguimos uma personagem, a entendemos e compreendemos algumas de suas mais questionáveis atitudes. Das lágrimas aos sorrisos, a câmera dos irmãos é meticulosa em explorar sensibilidade, explicitando comportamentos imprevisíveis, geralmente adornados por uma melancolia reprimida de desesperança. Reflete-se tudo a partir de expressões através dos afáveis olhos de Marion Cotillard.

Que atriz sensacional é a francesa Marion Cotillard. Que personagem simples e trabalhada com imensa doçura e delicadeza pela atriz, inquestionavelmente uma das melhores de sua geração. Cotillard vive Sandra, uma trabalhadora belga que ficou algum tempo afastada após enfrentar a depressão. Quando retornou, descobriu que sua presença não era tão necessária pelos colegas, já que os outros trabalhadores aumentaram sua carga horária recebendo um pomposo bônus. Para retornar, ela precisa que a maioria aceite abrir mão do bônus. Uma votação entre eles, no entanto, não está a seu favor.

O filme aborda a crise econômica, levanta questões familiares e o gosto pelo dinheiro. Desenvolve-se exatamente da maneira que o título propõe. Pouco tempo resta a Sandra para convencer alguns de seus amigos a votarem a seu favor. Acompanhamos ansiosos seus passos, torcendo silenciosamente por aquela mulher que nos é distante, mas que, diante a interpretação e naturalidade, favorecida pela projeção catártica, torna-se íntima. O roteiro acerta na atenuação desse drama factual e a escolha da protagonista só soma o sucesso da empreitada: têm-se um autêntico drama pessoal, sem confusões ou compelimentos que comprometam a interação com o público.

Ao longo da narrativa o espectador é impelido a conhecer um antagonista invisível, um sujeito cujas ações são adversas. É ele quem supostamente colocou os funcionários contra Sandra. Esse é um detalhe interessante dessa obra dos Dardenne, deixando no ar um fala e não fala, uma fofoca incisiva que potencializa as aspirações da mulher. O roteiro escrito pelos diretores é econômico e direto, não se prolonga e tampouco se aprofunda nas efemeridades, apenas dispõe cenas bem construídas, levando o espectador acompanhar uma verdadeira jornada por casas com um pedido clemente silenciado pelo pudor.

A política envolta da trama é silenciada pela crença no homem por parte de seus realizadores. Falta trabalho, mas não falta solidariedade. Ao menos é o que parece. “Coloque-se em meu lugar...” é uma das frases que mais se repetem. E dos dois lados. Com ela os Dardenne alinham uma proximidade do público com outros pontos de vista. A obra ganha profundidade a partir de breves informações particulares que dimensiona cada um dos personagens visitados por Sandra. São dois dias e uma única noite até a manhã de votação. São horas de angústia compartilhada amenizada por medicação. Segue uma lógica de um 12 Homens e uma Sentença transitivo, meticuloso em sua forma e conteúdo psicológico, com percalços morais e uma séria doença pondo em dúvida os limites de uma mãe de família assistindo suas estimas ruírem. Os diretores e a atriz nos leva a um caminho entre imagens acalouradas e poucos planos noturnos. Visualizamos as pessoas com suas vidas generalizadas, se pondo frente a uma decisão efervescente que não diz respeito unicamente a um sim ou a um não.

Visto na Mostra de Cinema de São Paulo

Comentários (9)

Silvia Lima | sábado, 21 de Fevereiro de 2015 - 21:24

E que performance de Marion Cotillard.😉

Gustavo Santos de Araújo | domingo, 27 de Dezembro de 2015 - 23:40

Quando você assiste ao filme, você compreende o que é, de verdade, transmitir para a plateia uma carga dramática ultrarrealista e tocante. Cotillard simplesmente absorve todo o filme e se torna maior que ele numa atuação impecável. É impossível não se engajar nessa ode à perseverança.]

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