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Críticas

Cineplayers

Hawks subverte seu melhor filme em um brilhante faroeste revisionista – um dos grandes exemplos do literal significado da função de um diretor.

8,5

Aproximadamente seis anos separam o dia de hoje da primeira vez em que vi El Dorado, num VHS surrado, com chiado, cores esmaecidas e tudo aquilo que transforma o filme em fita em uma experiência inusitada – e divertida – como nenhuma outra. Pouco recordava do enredo em si, tanto é que nem guardava na memória o fato de que se tratava, superficialmente, de uma releitura completa[mente diferente] de uma das maiores obras-primas do western, o microcosmo do estilo hawkskiano por excelência, Onde Começa o Inferno – gerando inclusive uma pequena surpresa depois daquele prólogo maldito de quase uma hora de duração.

El Dorado é um dos últimos filmes de um dos maiores gênios do Cinema norte-americano, Howard Hawks, feito depois de ele finalmente ter assimilado a queda da pragmática, retrógrada e apolítica ideologia que procurava utilizar para a regência da grande maioria de seus filmes – principalmente daqueles em que seu código de honra e ética pessoal, transportado quase sempre para o velho oeste, era posto em prova ou simplesmente evocado de certa forma. E é justamente por isso que o filme parece sempre permeado por uma atmosfera de auto-sátira, auto-homenagem, auto-releitura. Não apenas ao seu próprio universo, mas ao cinema clássico de uma forma geral.

Alguns especialistas consideram Hatari! o divisor de águas entre o Hawks clássico e o Hawks moderno. Não discordo. A aventura africana protagonizada pelo seu talismã John Wayne talvez seja o filme em que o diretor mais se desloca, ou realmente de desprende, por definitivo, da sociedade em que vivia. É um filme de universo próprio, fechado em sua teoria de conduta particular, construído exclusivamente para que Hawks desfilasse boa parte de suas principais temáticas e interligando-as em um mesmo ponto de convergência.

El Dorado pertence a esta segunda fase, fato que é perfeitamente perceptível mesmo sem a referência temporal. A primeira hora do filme, talvez o prólogo mais extenso de que eu tenho conhecimento, nada mais é do que uma pequena homenagem de Hawks a um gênero que, como ele mesmo já previa anteriormente, junto de Peckinpah (vide Pistoleiros do Entardecer) ou Anthony Mann (O Homem do Oeste, um dos meus westerns preferidos) e alguns outros realizadores, estava terminando de cavar sua própria cova – que levaria junto consigo outras grandes figuras da primeira metade do século XX, como o cinema insinuante de Billy Wilder e os musicais embebidos de alegria da velha Hollywood.

A pequena viagem inicial do personagem de John Wayne, um pistoleiro de encomenda, evoca, separadamente, filmes como Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone – o homem que surge em meio a uma guerra entre duas famílias, mas que, diferentemente do filme do italiano, não se apega a ela antes de encontrar uma necessidade particular -; Parceiros de Morte, de Sam Peckinpah, em especial pelo senso de justiça e de ética que fazem com que o remorso sobreviva como conseqüência da tragédia mesmo em meio a um mundo regido invariavelmente pela frieza individualista – personificada na figura do pai e sua reação à morte do filho; e O Homem Que Matou o Facínora, de John Ford, que tem por base o estudo do mito, explorado na magnífica seqüência do bar; entre outros.

Hawks joga aqui com o clássico de maneira bastante inusitada, de certa forma até mesmo transgressora, estruturando a primeira parte do filme em elipses carregadas de inexatidão e sem previsão de rumo, em um processo de quase improviso. E pelo menos dois elementos, desta feita não narrativos, mas visuais, demonstram a ascenção da modernidade que em breve seria ainda mais explorada em um de seus mais maltratados e surtados filmes, Rio Lobo: um zoom no rosto do personagem de Wayne, em momento determinante, e um corte descontínuo entre um e outro plano de uma mesma ação, escancarando na tela o processo de montagem do filme – coisa que na época já havia se tornado comum, depois de ser explorado à exaustão pelo grande fundamentador deste recurso, Jean-Luc Godard, mas que eram incomuns para o cinema classicista do diretor.

Mas é na segunda metade de El Dorado que Hawks finalmente apresenta suas garras para determinar a propulsão de um filme já espetacular ao mais sincero patamar de obra-prima. É o inicio da ‘trama’ principal, quando John Wayne retorna a El Dorado, à briga entre famílias, para auxiliar seu amigo, interpretado com a habitual intensidade de um dos grandes atores que o Cinema já viu, Robert Mitchum, atualmente xerife desiludido por uma mulher e cada vez mais afogado no alcoolismo – uma das primeiras brincadeiras de Hawks com seu próprio Rio Bravo, construído acerca de um extremo oposto, onde o xerife era auxiliado por um alcoólatra na mesma condição. É a decadência do Velho Oeste sob forma de uma cidade sem lei, mas o mais interessante é que o principal foco continua sendo Wayne e a desconstrução do mito. Porque John Wayne, no caso, é o próprio Velho Oeste, e sua condição é determinante para o tom de mortalidade que impregna em cada frame de El Dorado.

A perspicácia e a genialidade de Hawks chegam a um nível tão forte, tão ousado, tão imortal, que fica difícil não se impressionar com a versatilidade com a qual ele trata o material, que nada mais é do que uma releitura/refilmagem de seu principal faroeste – e quando se diz releitura é releitura mesmo, é o próprio Rio Bravo, em seu esqueleto, transposto para a tela, em alguns casos com seqüências idênticas, mas que terminam por ser o extremo oposto das originais em virtude da alternância de um simples elemento. É o mesmo filme, só que em um tom assustadoramente diferente, através do qual Hawks comprova que, com a troca de uma pequena coisinha da cena, pode-se alcançar um resultado final absolutamente diferente – escancarando também a importância das escolhas de um diretor para seus filmes.

Desta forma, Hawks constrói seu conto definitivo sobre a chegada do fim do cinema clássico, em especial do ciclo do faroeste. Porque, quando vemos John Wayne fracassar em meio a uma cena de ação devido a uma bala não removida de suas costas – e que foi projetada por, vejam só, uma mulher – dentro de um filme que, em sua primeira metade, trata exclusivamente do potencial icônico que sua figura mitológica transmite a um filme do estilo, pode-se dizer que o fim já era sem tempo. E é por isso que El Dorado é o grande exercício de refilmagem do Cinema, caso seja encarado dessa forma. Destruir o que o primeiro filme, um clássico absoluto, trabalhou para construir, e ainda assim ser um dos mais representativos exemplares do gênero que está servindo de alvo para a brincadeira o tempo todo, só poderia ser coisa de um filho da mãe como Hawks.

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