Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O que construímos com a dor.

8,0
Há de se aplaudir a extrema coragem de Cristiano Burlan. Seu novo filme é uma espécie de expurgo pessoal sem volta que não faz concessões aos limites que um realizador a princípio deveria ter. Deveria ter? Olhar para seu novo (e talvez cruelmente melhor) longa é se perguntar isso continuamente, durante toda a projeção. Há alguns anos atrás, Sarah Polley espanou a própria família em tela (a nova 'praça pública') com um dos trabalhos mais ambiciosos e bem sucedidos trabalhos da década, Stories We Tell. O filme de Burlan ecoa lá em Sarah, e nos coloca em posição de incômodo desconforto com as múltiplas sensações provocadas, que vão do horror absoluto à revolta profunda, passando pela dor mais verdadeira e o susto mais genuíno.

Burlan abre seu filme com uma narração em off e o percurso rápido de uma estrada com poucas curvas. A associação imediata com o impressionante Landscape Suicide de James Banning começa nessa sequência e é corroborada em outros momentos de exploração do cotidiano paisagístico, e Burlan faz de uma jornada pessoal que o fragiliza de certa forma uma peça de cinema em absoluto e um produto que, referenciando ou não, é também ele muito pessoal e muito particular em seus predicados; o processo imagético onde se desenvolve a criação de uma obra não deveria ser expelida por quem quer que seja. Nossa memória passeia por planos, por inquietações, que nos conectam com outros artistas em diferentes entonações de sensibilidade, e Burlan é um cineasta não apenas vibrante como também arejado, que confecciona a própria obra com particularidades e força cênica sempre em dia, e mesmo em projeto tão pessoal não perde isso. 

Sua força em enfrentar demônios recentes e doloridos é sem dúvida incrivelmente potente enquanto cinema, mas que poderia sugerir uma espécie de desprezo ao colocar sua família em posição delicada. Mas a forma como ele se insere no contexto, puxando a primeira pessoa desde a segunda cena, o tira de qualquer pensamento para esse lado. Na verdade é quase o oposto, já que ele narra sua busca e sem sentir vai se desnudando, mostrando uma vulnerabilidade que os olhos jamais entregaram. Ao decidir falar de sua mãe, do crime cometido contra ela, de como sua partida foi uma nova estocada contra uma família comumente despedaçada, provável que não imaginasse que fosse falar tanto sobre si e se expor tanto, de maneira particular inclusive.

O trabalho de montagem dele e de Renato Maia é exemplar, sabendo dosar o tanto de exposição, extendendo o tempo quando necessário e abreviando também se preciso. Suas cenas-chaves com cada um dos irmãos demonstram bem o tanto de brilho que existe na atividade de edição, ao mesmo tempo que o roteiro não nos prepara para o impacto das mesmas, de cada uma delas. A cada novo encontro, Burlan vai intercalando um misto de potência pessoal com uma solidão muito aguda, enquanto anda por aí em busca de justiça. O diretor ainda lança uma discussão excepcional sobre a validade de programas sensacionalistas, ao mesmo tempo em que encontra sim uma função prática para eles, e humaniza uma figura difícil de comprar, na teoria.

Dos raros 'senões' do filme estão na talvez óbvia trilha de Edson Secco (que fez um trabalho exemplar também na mostra em Brasília, no longa Parque Oeste) que exacerba um suspense desnecessário às vezes, acrescido de uma cena de gosto duvidoso protagonizada pelo diretor em um stand de tiro. Ao mesmo tempo, essa cena consegue uma ressignificação graças ao desfecho do longa, em bela cena de despedida onde Burlan demonstra seu diferencial numa sociedade tão polarizada e colérica quanto a nossa. Cristiano Burlan é um artista, e artistas fazem arte. Aqui ele lança um grito contra o feminicidio, e isso é o que de melhor um artista pode fazer: transformar sua dor. 

Filme visto no Festival de Cinema de Brasília

Comentários (0)

Faça login para comentar.