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Críticas

Cineplayers

A alegoria definitiva de Chaplin sobre a degradação por meio da competição por capital entre os homens.

8,0

Em se tratando de Charles Chaplin, é comum que sua filmografia seja classificada em dois momentos distintos. Um primeiro, mais alegre e festivo, voltado para a vivacidade e os trejeitos do personagem Carlitos, sobretudo com ênfase na comédia. A segunda fase de sua carreira seria supostamente a mais amarga, pessimista, trazendo uma reflexão taciturna sobre o mundo e a sociedade. Ainda que aparentemente tal classificação faça algum sentido, trata-se de um grande engano. Em todas as suas obras há, é claro, o humor, mas a grande sacada de Chaplin, o grande discurso que jaz por trás de seus filmes agridoces, é a luta de classes. Nesse sentido, seja em O Garoto, de 1921, em que narra o apego entre Carlitos e um menino de rua, seja em Monsieur Verdoux, de 1947, em que vive um inescrupuloso golpista de mulheres, Chaplin estava sempre trazendo a tona a opressão, o totalitarismo, as mazelas do capitalismo, o drama dos excluídos.

No filme Em Busca do Ouro, o filme pelo qual Chaplin disse que gostaria de ser lembrado, o multitalentoso criador talvez tenha elaborado o grande ponto de equilíbrio de sua carreira, um filme em que dosou bem a comédia, o melodrama, a crítica social e sua simbologia.  A história é relativamente simples: narra as desventuras de Carlitos em sua jornada ao Alasca, quando lá havia a busca de garimpeiros por ouro, todos sedentos por riqueza, cegos pela ambição, ao passo que tal jornada descamba para um total estado de delírio das pessoas.

E, justamente neste contexto, Chaplin compôs o filme onde concentram-se mais cenas antológicas suas numa só fita– inclusive a que é, provavelmente, a sua mais famosa, ao lado daquela “outra” de Tempos Modernos. Um dos garimpeiros, desnorteado por sua fome e cobiça desenfreada, passa a imaginar Chaplin tal como um frango, a ponto de sacar uma arma na intenção de matá-lo para depois saciar sua fome – uma menção a idéia de detração por meio da competição, o canibalismo sob sua pior forma: o que faz alegoria ao capitalismo selvagem (convém lembrar que Chaplin era de orientação esquerdista).

Outras sequências, beirando o grotesco e o escatológico, como a que faz uma refeição comendo suas próprias botas, após estas terem sido devidamente cozinhadas em um fogão. E, é claro, a mais famosa das cenas do filme: a dança dos pãezinhos. Em Busca do Ouro se tornou conhecido pelo exacerbado perfeccionismo, pelo fato de que estas seqüências mencionadas terem acarretado dezenas e dezenas de tomadas até sua completa satisfação, de um homem que foi ao mesmo tempo diretor / produtor / roteirista /  ator / compositor das trilhas. Não por acaso, neste caso o material gravado foi quase 30 vezes maior do que o tempo de duração que o trabalho final editado. A cena em que Carlitos e seu parceiro Big Jim cozinham uma bota para o jantar levou mais de 60 takes. Johnny Depp, que refilmou a dança dos pãenzinhos, declarou no documentário Vida e Arte de Charles Chaplin que esta foi umas das coisas mais difíceis que já fez na vida como ator.

Chaplin tinha a preocupação que seu cinema fosse, ainda que entretenimento voltado ao grande público, um manifesto que evidenciasse a degradação dos homens quando ludibriados pela cobiça e pelo poder. Entretanto, o esforço de Chaplin aos dias atuais parece ter sido, de certa forma, em vão, uma vez que isso lhe rendeu o ostracismo na América (que só se redimiria com seu Oscar tardio), e hoje seja muito mais lembrado – injustamente - como um autor de comédias do que um militante de seus ideais, e os estudos de Chaplin em livros sobre a história do cinema, mesmo na academia, sejam relegados a um segundo plano.

Glauber Rocha, ao saber da morte de Chaplin em 25 de dezembro de 1977 (quando filmava A Idade da Terra) declarou que a morte de Chaplin representava a morte do humanismo no século XX. De fato, Glauber, talvez o cineasta brasileiro mais engajado politicamente na história, viu no fato e naquela data um desafio simbólico na civilização contemporânea. Mas o prenúncio de Glauber persiste: desde Chaplin, quando o cinema conseguiu ser tão entretenimento, tão “massa”, e mesmo assim tocar em questões humanísticas e em feridas sociais com retórica tão refinada?

Comentários (2)

Silvia Lima | quarta-feira, 12 de Julho de 2017 - 19:41

Otimo texto.

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