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Críticas

Cineplayers

Qualidade do elenco e da direção conferem ao filme uma importância maior do que a devida. Erin Brockovich é "apenas um bom filme".

6,0

Após ter visto Plano de Vôo, o novo filme de Jodie Foster, saí do cinema com a impressão de ter visto a um bom thriller. Uma fita ágil, curta (não tem nem 90 minutos), que vai direto ao ponto e que, dentro da sua proposta, cumpre sua função de entreter o público. Mas em seguida veio a indagação: o que, diabos, Jodie Foster estava fazendo num filme superficial como aquele? Percebi, neste instante, que minha avaliação estava levando em consideração a persona da atriz e a qualidade dos seus trabalhos anteriores. Diante destes dois aspectos (quem questiona o talento de Jodie?), era inevitável que Plano de Vôo caísse alguns pontos no meu conceito. Não pelo filme em si, mas por ele ser, digamos, descartável demais para uma atriz como Jodie Foster.
 
Repensando estas coisas, lembro que tive a mesma sensação ao ver Erin Brokovich – Uma Mulher de Talento (como de praxe, aqui no Brasil, a originalidade e qualidade dos subtítulos nem sempre é das melhores), fita lançada em 2000 e que hoje é lembrada mais por ser aquela que deu à Julia Roberts o Oscar de melhor atriz. Na época, não entendia o motivo que levava um estúdio dar à fita – convencional até o osso – um tratamento de primeiro escalão. O filme contava com a maior estrela de Hollywood da época (creio que hoje, Julia ainda dá as cartas por lá), coadjuvantes de renome, equipe técnica de primeira, e um diretor que, naqueles anos, era o queridinho dos executivos e de 9 entre 10 astros americanos. Toda esta estrutura conferia a uma história basicamente simples, um grau de importância maior do que o realmente devido. A aura de produção classe “A” que o rodeava, prejudicava o resultado final. Não pelos defeitos eventualmente existentes no filme, mas sim pelo fato de a fita prometer mais do que cumprir.

Em outras palavras, não é que Erin Brockovich não tenha qualidades (aliás, pelo contrário). É que, pelos talentos envolvidos, o projeto podia ser destinado diretamente para a TV a cabo. 

A imprensa americana especializada não entendeu assim. Não foram poucas as associações de críticos que o elegeram como um dos 10 melhores filmes do ano. Além disso, as interpretações de Julia Roberts e Albert Finney foram agraciadas com diversos prêmios – ela, por exemplo, além do Oscar já mencionado, levou para a casa o Globo de Ouro, o BAFTA, o National Board of Review e o prêmio do Sindicato dos Atores. Da mesma forma, o diretor Steven Soderbergh foi considerado o melhor pelos críticos de Los Angeles e Nova Iorque. Só não ganhou o Oscar por este filme porque, naquele ano, ele próprio se superou ao realizar o superior Traffic, pelo qual saiu vencedor (batendo os favoritos Ang Lee e Ridley Scott).

O público também reagiu positivamente, fazendo com o que o filme ultrapassasse a marca dos U$ 100 milhões, algo particularmente difícil para uma película lançada no início do ano (a estréia se deu em março de 2000) e que não contava com efeitos especiais ou movimentadas cenas de ação.

Passados cinco anos de seu lançamento, creio que apenas duas razões explicam este fenômeno: ou Erin Brockovich é realmente um filme marcante e mereceu todos os elogios obtidos, ou o ano de 2000 foi dos mais fracos dos últimos tempos. Com a baixa qualidade das obras em geral, trabalhos apenas medianos como Erin, se sobressaem num manancial de mediocridade. Diante destas opções, estou convencido de que a segunda é a mais provável de ser a correta.

Enfim, todos estes problemas precedem ao filme. Estão mais ligados à própria decisão de um grande estúdio e um grande estrela levar o projeto avante. No entanto, o que importa aqui, é o filme propriamente dito. Então deixemos estes detalhes de bastidores para falar All About Erin.

Logo no começo, Erin Brockovich (Julia Roberts) está à procura de emprego. É do tipo faz tudo. Tem experiência como garçonete, mas não titubeia em adaptar suas qualificações às exigências dos anúncios de jornal. Afinal, ela é mãe de três filhos, cujos pais já foram para seu inventário de relacionamentos equivocados. Está mais do que evidente que precisa de dinheiro, e rápido. Ao sair de mais uma entrevista infrutífera, ela sofre um acidente de carro (numa seqüência sem cortes, incrivelmente bem filmada), e resolve processar o responsável pelos danos causados. Contrata o advogado Ed Masry (Albert Finney) que garante, de antemão, o sucesso na demanda. As coisas não correm tão bem quanto o esperado e Erin não obtém a indenização pleiteada. Indignada, e considerando que foi mal assistida em sua defesa, dias depois, resolve invadir o escritório do seu patrono, exigindo dele um emprego (se a moda pega...). Tamanho escândalo que ela promove, que Ed se sente obrigado a contratá-la como arquivista. No curso de suas atividades, Erin se depara com documentos que comprovam a contaminação do reservatório de água de toda uma cidade por parte da empresa Pacific Gas & Electric, que teria causado a morte ou doenças de vários de seus habitantes. Em parceria com Ed, ela inicia uma cruzada contra os responsáveis, envolvendo-se de corpo e alma na questão, inclusive com as famílias vítimas da poluição. Paralelamente ao seu trabalho, na vida pessoal Erin se envolve com seu vizinho George, uma mistura de motoqueiro, hippie, radical dos anos 60, e vagabundo (Aaron Eckhart).  

Apesar de não trazer nada de muito novo, o filme possui qualidades indiscutíveis. Boas interpretações e um competente desenvolvimento dos personagens principais, especialmente o de Erin. O roteiro original, de Susannah Grant, de trabalhos tão díspares como Para Sempre Cinderela e 28 Dias, escapa com eficiência da armadilha do linguajar jurídico, que poderia afastar os leigos no assunto. A história se desenvolve com um bom ritmo. O carisma dos atores ajuda. Soderbergh também.  

O elenco está muito bem. Julia Roberts talvez vivesse, na época, seu melhor momento. Após inúmeros fracassos ao longo da década de 90, tais como Adoro Problemas (1994) e O Segredo de Mary Reilly (1996), os quais pareciam anunciar o fim precoce de uma estrela surgida na esteira do estrondoso sucesso de Uma Linda Mulher (1990), a atriz voltava a fazer as pazes com seu público com o simpático Um Lugar Chamado Notting Hill e o desnecessário Uma Noiva em Fuga, ambos de 1999. Faltava Erin Brockovich para que Julia Roberts recebesse o reconhecimento também dos críticos. Ainda é hoje a estrela mais bem paga de Hollywood, com salários quase idênticos aos astros masculinos. Por Erin, recebeu a bagatela de U$ 20 milhões, o que representou praticamente a metade do orçamento total do filme, de U$ 51 milhões.

Além dela, o personagem de Ed Masry, um advogado pequeno e algo indeciso, dá a Albert Finney seu melhor papel em anos. Ainda que o roteiro não ofereça a ele muitas oportunidades (Julia Roberts ocupa praticamente todas as cenas do filme), e que o ator tenha um jeito meio estranho de falar (talvez derivado do seu sotaque excessivamente britânico), percebe-se nas suas intervenções o grande talento que possui. O outro integrante de destaque do elenco é Aaron Eckhart, que interpreta George, o interesse romântico da personagem central. Com o envolvimento de Erin no processo de contaminação da água, e seu afastamento do lar, George passa a cuidar da casa e das crianças. Uma autêntica inversão de valores, para quem viu Aaron como o machista inescrupuloso de Na Companhia dos Homens, de Neil La Bute. Mas o ator, neste giro de 180 graus, sai-se muito bem, com uma atuação espontânea, sem pieguice.

Outro ponto favorável do filme é a caracterização do personagem central. O roteiro se preocupa em dedicar várias cenas à intimidade do lar de Erin, e sua preocupação – e dificuldades – em educar sozinha as três crianças. É do tipo mulher forte, ainda que um pouco ignorante, e que não mede esforços para a felicidade de seus filhos. Ao mesmo tempo, mostra toda sua fragilidade e medo, ao decidir embarcar em um novo envolvimento amoroso com George. O jeito vulgar de Erin vestir-se e falar (Julia nunca falou tantos palavrões, além de quase sempre contracenar de saias curtas e decotes bastante pronunciados), é outro meio pelo qual o roteiro revela mais um pouco da sua personalidade obstinada. Erin não leva desaforo para a casa e não é mulher de meias palavras. Como, por exemplo, quando Ed Masry aponta que seu figurino não é apropriado para um escritório de advocacia, ela retruca que ele deveria se preocupar com suas gravatas. Em situações como essa, o personagem de Erin é, antes de alguém “esquentado”, uma pessoa mal educada. O roteiro não faz questão alguma de esconder isso.

A direção ficou por conta de Steven Soderbergh, que atingia a incrível marca de quatro filmes em menos de dois anos. Profissional considerado restrito ao cinema de arte, fama que conquistou após o repentino sucesso da sua estréia, quando venceu o Festival de Cannes com o cult Sexo, Mentiras e Videotape (1989), Soderbergh pareceu ressurgir das cinzas no final dos anos 90. Reconquistou o público e a crítica em filmes como Irresistível Paixão (1998) e O Estranho (1999). Em ambos, encontrou uma fórmula esperta de fazer cinema, que alia a qualidade de fitas mais rebuscadas, com a agilidade das mais comerciais. De posse de roteiros inteligentes e munido de truques espertos como uso inventivo da narrativa não linear e do congelamento de cena, ele retirou aqueles filmes da vala comum de thrillers esquecíveis.

Em Erin Brockovich, Soderbegh abriu mão deste expediente. Como se ele mesmo reconhecesse o lado convencional do material que tinha em mãos, o que exigiria um tratamento cinematográfico sem floreios. A opção do diretor trouxe o problema de fazer com que a trama se desenvolvesse numa incômoda linha reta, com o personagem de Erin enfrentando seus obstáculos, um de cada vez, num autêntico novelão. Se o roteiro fosse desenvolvido com esse vai-e-vem no tempo, o filme ganharia outro colorido, e subiria muito de cotação.

Outro problema é que não há grandes surpresas no desenrolar da historia. Ao longo dos seus 130 minutos de projeção, Erin atravessa as dificuldades e preconceitos naturais que qualquer pessoa – homem ou mulher – enfrentaria. Mesmo as armadilhas legais e processuais que se apresentam, são as esperadas, e, de uma forma ou de outra, vencidas. Ao final, o resultado é passado ao público tão sem emoção, que o próprio roteiro parece ter consciência de sua previsibilidade, contando a grande novidade em tom menor.

Vem daí o meu incômodo inicial com relação à decisão de levar avante a história destes personagens. Talvez a intenção fosse mostrar a possibilidade do indivíduo se opor contra o sistema, que o singelo pode bater o mais forte, que um David suplanta um Golias (comparação mencionada ao longo do filme). Basta, para tanto, ter força de vontade e ir a luta, em que pese todas as barreiras que o destino colocar no caminho. A vida de Erin ganha, sob este aspecto, ares de lição de moral. Nada há nada mais batido que isso.

Roger Ebert, crítico americano do Chicago Sun-Times e um dos únicos detratores do filme de Julia Roberts, chamou-o de uma mistura de A Qualquer Preço (A Civil Action, 1998) com Silkwood – Retrato de uma Coragem (Silkwood, 1983). Naquele, o advogado vivido por John Travolta coloca seu escritório em jogo na defesa de várias famílias prejudicadas pela poluição da água por uma grande corporação. Neste, a operária personificada por Meryl Streep luta contra a contaminação radioativa de que foi alvo na empresa nuclear em que trabalhava. As aproximações procedem. No entanto, ambos superam Erin Brockovich em qualidade. A Qualquer Preço tinha a seu favor um personagem central mais interessante. Além do mais, o duelo de inteligências disputado na arena dos tribunais, é sempre um elemento que exerce grande atração. E demais a mais, poucos filmes têm o privilégio de contar com atores coadjuvantes como William H. Macy e Robert Duvall. Silkwood, de seu turno, abordava o tema da radiação nuclear, por si só, mais importante e atual. Não bastasse isso, o drama da contaminação ocorre com a própria personagem principal. Mais do que nunca, a cruzada pessoal em busca de uma solução para o problema se justificava. Erin Brockovich aproveitou e copiou parte das situações já testadas e aprovadas nestas obras. Se o resultado não é de todo ruim, também não disse a que veio.

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