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Críticas

Cineplayers

Um olhar para o mundo.

10,0

“Diga-me, você nunca ficou curioso?
Para aquilo que se esconde por trás do limite do conhecimento?
Você nunca desejou ver além das nuvens e das estrelas?
Ou saber o que faz as árvores crescerem e as sombras se iluminarem?
Se você falar isso vão te chamar de insano”.

Para completar-se enquanto experiência, o cinema tem de perpassar um conflito de olhares. De um lado, o olhar de quem cria o filme, fragmentando imagens e compondo novas realidades através da composição de planos e sons. Do outro, concluindo o ciclo, o olhar de quem o contempla, que determina o que será assimilado e de que forma isso acontecerá. Embora, desde o princípio, tenham encarado o cinema como uma experiência coletiva, a verdade é que, independente de quantas pessoas estejam na sala, não poderia haver experiência mais solitária que a apreciação de um filme; apenas você, considerando-se todo o subjetivismo de que se vale essa relação, tem conhecimento do que viu e sentiu através do material filtrado por seu olhar.

O Espírito da Colméia (El Espiritu de la Colmena, 1973) é um filme sobre este olhar. Uma questão que se constrói através do cinema e que o ultrapassa para a vida pelo olhar de uma garotinha de 6 anos, vítima da solidão provocada pela Guerra Civil espanhola durante a década de 1940. Anna, personagem da bela atriz mirim Anna Torrent, vive em uma minúscula província da Espanha, isolada do mundo, junto de seu pai, um velho apicultor; sua mãe, mulher depressiva que ainda chora um amor perdido para a guerra; e sua irmã, única companheira com quem pode dividir dúvidas e curiosidades tão naturais dessa idade. A situação política do país constrói um cenário moribundo e desolador. Anna vive em uma colmeia com pouca luz exterior, sem sequer suspeitar do que existe lá longe, do outro lado do horizonte.

É através do cinema, em uma exibição de Frankenstein (idem, 1933), que a garotinha confronta a realidade em que vive e se depara com temas caros a certa fase melancólica da infância – e, para muitos, não apenas dela. O que é real no mundo em que vivemos? O que é real naquilo que vemos nele? O que é a morte, e o que ela significa? No olhar de Anna, enquanto observa o monstro brincar com a garota à beira do lago, vê-se um misto de medo e curiosidade, uma feição de quem, mais do que compreender o que vê, quer ver além do que pode ser visto. No filme, o monstro mata a garota, o que instiga Anna a descobrir o que isso significa; a partir daí, o cineasta Victor Erice dilui sua narrativa poética pelo olhar de Anna para o mundo e por sua curiosidade em desvendar o desconhecido, os mistérios da vida física e espiritual para tentar enxergar, como dizem os versos transmitidos pelo áudio ouvido por seu pai, “além das nuvens e das estrelas”.

A reação de Anna a esta experiência e a forma tão particular com que passa a ver as coisas após ela são as motivações deste filme singular, atmosférico e onírico, de narrativa minimalista composta por belíssimas imagens em tons de mel – cortesia do fotógrafo espanhol Luis Cuadrado. Mais do que um filme sobre uma criança investigando o mundo em confronto com suas dúvidas existenciais, Victor Erice faz de O Espírito da Colmeia uma alegoria sobre a forma como observamos e reagimos a este mundo, seja através dos filmes ou do contato presencial. A partir do momento em que se declara como ponto de vista de Anna, a câmera de O Espírito da Colmeia deixa sua habitual função observacionista para assumir-se como um poético olhar subjetivo – frágil, delicado e imperfeito, para ser sentido e completado por quem vê.

Anna aguarda pela chegada do Frankenstein do filme em sua tediosa realidade. A irmã incentiva-a a procurá-lo. O filme de James Whale desperta reações diferentes nas duas garotas – e na forma com que lidam com os temas que discutem entre si, na cama, antes de dormir. Enquanto Anna passa a acreditar na possibilidade da existência de um monstro em forma de espírito, Isabel, interpretada por Isabel Tellería (todos os personagens possuem o primeiro nome dos atores que os representam), vê nessa crença uma possibilidade sádica e malvada (ao menos é assim que Anna a vê, e consequentemente que o filme nos mostra) de brincar com a inocência da irmã. A morte para Anna é, como nos filmes, uma mentira, afinal em seu mundo pode-se existir para além do estado físico; para Isabel, porém, segue sendo um mistério real, com sua consciência de que algo ruim certamente deve acontecer, o que a motiva a querer experimentá-la.

Enquanto aguarda o monstro, Anna desbrava os mistérios do mundo à sua volta com uma singeleza encantadora. Seja ao andar sobre um trilho de trem, fazer uma guerra de travesseiros, colher cogumelos na floresta, olhar para dentro de um poço, comparar pegadas na terra ou encarar manchas de sangue na parede; ela observa, sente e vive cada pequeno momento como sendo uma grande lição. Cada plano de O Espírito da Colmeia é uma das mais belas imagens já filmadas, e digo isso com toda a subjetividade que me é permitida por um filme que, acima de qualquer coisa, preserva a importância da reação e da contemplação individual àquilo que pode ser visto ou sentido.

O Espírito da Colmeia encontra parentesco próximo com um filme lançado em 2011 no circuito nacional: Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Loong Boonmee Raleuk Chat, 2010). Um personagem a lidar com a vida e a morte, o leque de possibilidades que se arma através da diluição de barreiras entre o real e o irreal, o físico e visível aos olhos e a crença naquilo que não vemos, mas que pode estar presente. Boonmee, o personagem do filme de Apichatpong Weerasethakul, abraça o espírito de sua mulher morta e pede conforto enquanto aguarda por sua própria morte. Anna, ainda no começo da vida, se pergunta, afinal, o que é a morte, o que são os espíritos, o que são essas tais barreiras diluídas pelo filme de Apichatpong.

Ao final dessa simbólica jornada de descobrimento, com seus marcantes olhos negros, Anna encara a noite pelo vão da janela com a confiança de uma velha guerreira. Quase vemos um sorriso estampando naquele belo rosto melancólico. Há tanto para ser desbravado ao seu redor, e sua eterna curiosidade e a aceitação do mistério como uma inevitabilidade existencial sobrepõem-se ao medo do desconhecido.  O mundo está inteiro à sua espera. Frankenstein existe. A vida... Espera aí. Frankenstein existe mesmo?

Bem, para Anna ele é possível, e isso é suficiente.

“Anna, o que está faltando a Don José?”.
“Os olhos” .
“Os olhos. Muito bem. Então coloque-os”.

Comentários (17)

Pedro H. S. Lubschinski | terça-feira, 26 de Janeiro de 2016 - 12:30

Sou leigo, cara. Só descubro esses filme aí cultão e tal quando cês indica (e mesmo assim nem sempre vejo hahaha) 😐

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 26 de Janeiro de 2016 - 13:17

Quem gostou desse precisa ver alguns do Carlos Saura também...

Rafael Alves | terça-feira, 26 de Janeiro de 2016 - 14:15

preocupa não, pedro. Tamo aê pra isso.

Luís F. Beloto Cabral | terça-feira, 26 de Janeiro de 2016 - 22:59

Esse filme é simplesmente divino! Uma das melhores experiências fílmicas que já tive!

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