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Críticas

Cineplayers

Em busca do Cinema.

9,5

“O cinema é uma arte prestes a se perder, uma arte prestes a morrer?”, perguntou Wim Wenders em Cannes a diferentes cineastas em 1982, preocupado com o futuro do cinema, que daria origem ao documentário Quarto 666 (Chambre 666, 1982). De Spielberg a Antonioni, passando por Monte Hellman, Fassbinder, Ana Carolina e Jean-Luc Godard, eles discutem estética, discutem necessidade, discutem produção, projeção, entretenimento, indústria, individualidade.

O novo cinema alemão, cinema “sem pais, apenas com avós” observado por Herzog  em Caminhando no Gelo, já que “Papa Kino ist Tot”, o Papai Cinema está morto (o passado nazista era confrontado com experimentos estéticos em nome da individualidade contra a estética totalitária), afirmaram os signatários do Manifesto de Oberhausen em 1962 chegava, vinte anos depois, em profunda discussão e questionamento com o zeitgeist da televisão cada vez mais proeminente entre a população, os “dois minutos para a meia-noite” que o Relógio do Apocalipse apontava no clímax da Guerra Fria, guerra esta em que duas superpotências rachavam em dois o país. Naquele mesmo ano, morria Rainer Werner Fassbinder, o revolucionário e enfant terrible do Novo Cinema Alemão, com sua morte sendo considerada o “prego na tampa do caixão” do movimento.

Em O Estado das Coisas, esse mundo à beira do colapso já implodiu. No mesmo ano de Quarto 666, Wenders interrompe uma enigmática e silenciosa cena de ficção científica em sépia para, em preto e branco, mostrar uma equipe de cinema que não pode filmar. Estão sem dinheiro, estão sem película e o produtor sumiu. Cabe ao diretor procurar por ele. A obra foi inspirada na experiência do diretor em filmar Hammett - Mistério em Chinatown (Hammett, 1981), produzido por Francis Ford Coppola, obra produzida com interrupções e indas e vindas do diretor entre América e Europa, em viva encarnação do dilema do filme: o que era, aonde estava, para onde ia o cinema em 1982? Esta problemática não tem sua resposta, mas seu questionamento, em um filme que finca o pé no paradoxo, na oposição, no antagonismo.

O Estado das Coisas são dois filmes: é uma obra onde reside o esvaziamento dramático, a contemplação, a divagação; o tempo, enfim. Mas também onde reside a investigação, a ação e a narração; o movimento, pois. Duas metades para dois cinemas. Um filme para um confronto. Em Portugal, onde a filmagem de ficção científica é interrompida, a letárgica equipe aguarda a ficção voltar, enquanto experimenta a realidade. O diretor, mestre absoluto da ficção, tem que confrontar sua realidade. Passar a intervir nela. A exposição direta dos fatos é substituída pelo mistério. Em meio a estes limites confusos, restam apenas cacos de cinemas. Os filmes clássicos, os novos cinemas, o legado de escolas, movimentos e indústrias – na síntese de tudo, qual estado de coisas era observável à época daquele filme?

Reconhecido como artista de road movies, transformando as vidas de seus personagens desajustados da vida convencional pelo deslocamento. Esta é outra trajetória de Wenders, espiritual e física: atravessa um continente, atravessa cinemas, ergue um construto dramatúrgico em sua segunda parte, uma fuga da história sem propósitos e de sonhos destruídos em Portugal. Em Los Angeles, é o investigador  de film noir, mergulhando nas trevas da indústria. Entre a liderança cheia de propósitos e agendas idealistas do cinema narrativo, “de prosa” e a dissolução contemplativa e questionadora do cinema contemporâneo, “de poesia”, qual o papel do cineasta?

“Sem dúvida, a vida passa a cores. O preto e branco, porém, é mais realista”, diz a certo momento Joe, o cinegrafista, interpretado pelo lendário Samuel Fuller. A crença de Sam na estilização como ruptura com o naturalismo e fuga com a representação o tornou livre para e sua carreira independente e furiosa dentro dos EUA fazer filmes rápidos, impactantes, de tons folhetinescos e tons exagerados tanto de luz quanto de dramaticidade. Esta afirmação ecoa por toda esta obra em preto e branco; entre outras referências ao longo do filme – a filmes de Nicholas Ray, Fritz Lang, Murnau – há sempre a impressão de que desta vez, longe do gênero apesar de dialogar com eles, não há um horizonte de expectativas, mas de possibilidades.

O Wenders de O Estado das Coisas tem este conflito entre ser tudo - um filme que abarque toda a ficção e criação à sua volta, intervendo e relacionando-se com o todo, como mandam suas aspirações – e nada, tal como acontece no filme de escombros, de estilhaços, de personagem espectador e errante em seu mundo. No hotel onde estão hospedados e logo serão mandados embora, a equipe de atores e técnicos conversa, bebe, transa, contempla a passagem do tempo no preto e branco sombrio e crepuscular que domina o filme junto a um silêncio praticamente Antonioniano – o silêncio do desespero, da alienação, da letargia, o silêncio diegético de saber-se cercado por tudo mas entorpecido pelo nada.

Já o cineasta parece o único preocupado em assumir rédeas, tomar um rumo – e o seu flerte em intervir com o real é um grande ponto de interrogação. O cineasta Friedrich Munro (em um filme preto e branco sobre tudo morrendo pouco a pouco, o protagonista tem um nome um tanto suspeito em sua semelhança com o expressionista Friedrich Murnau) identificado com Wenders em sua decepção com Hollywood, busca dar continuidade ao seu remake de Roger Corman, O Dia em que o Mundo Acabou (The Day The World Ended, 1956) porque não terminar sua história é ficar sem resposta, já que para aquela indústria, “filmes sem histórias são como casas construídas sem paredes”. Mas onde foram parar as paredes no atual estado de coisas?

A crise de identidade e angústia sobre os futuros do cinema e por conseguinte da realidade, grandes combustíveis criativos para um de seus testamentos em filme, motivaram o cineasta a rachar seu cinema, flertar com as possibilidades, incorporar narrativa e observação e perguntar, de forma livre, o que seria feito com a sétima arte a partir dali. “Papa Kino”, o cinema convencional morto, ainda era um espectro a rondar por perto, assombrando as figuras que ousavam andar sem grilhões. E Wenders, como seus outros conterrâneos e contemporâneos, tiveram de matar cinema para criar cinema. Agora, dessa vez, em filme.

Comentários (6)

Gustavo Antocheski | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 00:17

Que critica! Amo esse filme. Podiam fazer uma critica para Paris, Texas.

Ricardo Amaral Guedes | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 13:02

Pô, to com esse no pen drive há mais de ano. Depois desse texto (e dessa nota) é ver hoje ou ver hoje!

Josiel Oliveira | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 21:28

Genial essa crítica!! Realmente o filme ganha muito em importância com esse contexto histórico. A década de 80 parece ter sido realmente um divisor de águas para o cinema estilizado ao invés do naturalismo. São raros os exemplos que levantam essa bandeira após isso (Carpenter, Tarantino), e muitos deles caindo pro lado da sátira (Black Dynamite por exemplo, até o Killer Joe foi classificado comédia ?!?!).
E impossível não citar a importância do Fuller nesse contexto, como diretor genial e boicotado em Hollywood, e que não apenas atua em Hammet como também talvez tenha sido a grande inspiração pelas suas novelas Pulp e seu estilo em filmá-las.

Josiel Oliveira | segunda-feira, 23 de Março de 2015 - 21:36

E Hammett é um filme bem style! A fotografia é coisa linda

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