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Estranho Caminho

(Estranho Caminho, 2023)
7,4
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Críticas

Cineplayers

Sonhos febris da reaproximação entre estranhos.

8,0

Durante um bate-papo com Guto Parente e Lucas Limeira, diretor e protagonista de Estranho Caminho (Estranho Caminho, 2023), respectivamente, após a exibição do longa numa pré-estreia, pergunte ao realizador sobre suas prováveis referências para a construção narrativa do filme, já que dois nomes sempre me vinham à cabeça durante a projeção: John Carpenter e M. Night Shyamalan - ao menos esse segundo Guto confirmou que era realmente uma das inspirações. Em seguida também perguntei aos outros envolvidos com o filme que estavam ali se eles enxergavam Estranho Caminho como um filme de horror, e ao menos aqui tive a impressão de que não, nenhum deles imaginava o filme como tal.

Tudo isso, é claro, revela a riqueza de quando uma obra é, enfim, entregue ao público: de certa forma, agora o filme é de todos nós, não de quem somente o roteirizou, dirigiu, atuou, etc. Coloco desta forma porque, na mesma coletiva, Guto revelou sua consciência de que “ninguém mais queria outro filme de pandemia”, segundo o próprio, o que não deixa de ser uma afirmação verdadeira. Ali no início, nos vimos inundados com documentários, matérias e até obras de ficção que visavam lidar com um trauma ainda não digerido entre perdas e incertezas. Passado o pandemônio, mas não as cicatrizes deixadas por ele, Estranho Caminho parece surgir num momento mais propício para lidar frontalmente com essas feridas abertas, situando temas como o não-pertencimento e a incomunicabilidade parental dentro de um contexto pandêmico.

Ora, e não foi assim a pandemia, quando nos vimos enclausurados em espaços que não nos pertenciam mais (muitos indo passar suas quarentenas em lugares que lhe ofereciam mais segurança, mas não eram suas casas), famílias e relacionamentos perturbados pelo enclausuramento… Estranho Caminho é tão “filme de pandemia” quanto tantos que vieram antes, mas chega em um timing maturado aos cinemas. Obviamente auto-biográfico ao acompanhar um jovem cineasta, David (Lucas Limeira em seu segundo papel num longa após o boom de Cabeça de Nêgo (Cabeça de Nêgo, 2019)) que se vê enclausurado em Fortaleza após vir de Lisboa para apresentar seu filme num festival que acaba sendo cancelado e se vê sem rumo ao ponto de ter que pedir para viver com o pai (Carlos Francisco, tão marcante aqui como em sua rápida contribuição em Bacurau Bacurau, 2019)) com quem não tem contato há muitos anos, Estranho Caminho se posiciona como um filme de externalizações para seu próprio realizador, que perdeu o pai em 2018, fora do contexto da pandemia, mas que busca nessa ambientação uma forma de catalisar essa reaproximação desregulada entre pai e filho.

Dessa forma, se Estranho Caminho não deixa de ser um filme de pandemia, ele também se firma com alguns passos além. Faz ainda mais sentido, em especial quando Parente confirmou as influências de Shyamalan em sua obra (e que não são de hoje, convenhamos), o caráter lúdico com o qual o cineasta carrega seu filme, e poucos momentos em nossas vidas pareceram tão lúdicos e/ou distópicos aos nosso sentidos quanto a pandemia. Parente enxerga no elemento fantástico empregado ao cinema (não á toa que o filme do protagonista David parece o mais autêntico dos pesadelos) a sua forma mais autêntica de lidar com as não-resoluções de um momento que, apesar das marcas deixadas, hoje parece uma sombra muito distante.

Existe um experimentalismo imagético pontual e muito bem-vindo, entre texturas e delírios na imagem, que criam uma unificação entre o filme de David, também um objeto de reaproximação com o pai, e sua realidade enclausurada daquele momento, que trazem ainda mais força aos últimos 20 minutos que reconfiguram grande parte da narrativa até então, quando Parente permite se lançar num melodrama ainda mais explícito devido ao significado dessa reconfiguração. Um humor ao melhor estilo “rindo de nervoso” também se faz presente nas breves buscas por essa quebra do onírico, desde as respostas ríspidas do pai de David que também as corresponde com um certo deboche, até a impagável cena da delegada que pouco se importa com uma violência sofrida pelo protagonista.

Curioso, então, que tal realização de Guto chegue aos cinemas tão próxima de A Filha do Palhaço (A Filha do Palhaço, 2023), de Pedro Diógenes, com quem Parente já colaborou em tantos outros projetos e que também traz um filme sobre a reaproximação parental, mas do ponto de vista de um pai. Não seria exagero dizer que são filmes que se contrapõem e se completam na mesma medida, ao mesmo tempo que refletem um novo movimento dentro do cinema cearense: o da afetividade. Os vindouros Mais Pesado é o Céu (Mais Pesado é o Céu, 2023) e Quando Eu Me Encontrar estão aí pra não me deixar mentir. Daí que Parente entende que já não basta revisitar as atribulações do contexto pandêmico por si só, mas que essa ambientação é perfeitamente capaz de potencializar temas que nos cercaram naquele momento, em especial, a reaproximação de dois mundos tão distintos, onde mesmo sonho mais febril é capaz de nos reconectar com aqueles que mais amamos.

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