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Estranho Mundo de Zé do Caixão, O

(Estranho Mundo de Zé do Caixão, O, 1968)
7,3
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Críticas

Cineplayers

Antologia. Assassinato metendo a mão no cadáver que se justifica por instinto e tesão

8,5

“Homens que fazem notícias.”

E o Zé segue agora pelo caminho da inspiração nas revistas em quadrinhos de horror dos anos 60. É sabida a predileção do Mojica por quadrinhos – o cara tinha uma coleção monstra começada na infância – e juntara isto com seu fascínio pelo pavoroso quando se deparava com material de apavoramento escroto das mais variadas editoras americanas, tais quais a Fawcett Comics (1938-1980), Avon Periodicals (1941), a revista Creepy (1964-1983), entre outras. Muitas delas eram marcadas pelo caráter dos pequenos contos grosseiros num estilo que teria sua popularização em várias mídias (contando com a inspiração anterior na literatura de horror), e a posteriori nos materiais das séries televisivas como Os Contos da Cripta (Tales from the Crypt,1989-1996), esta criada por William Gaines e Steven Dodd, e filmes como Creepshow - Show de Horrores (Creepshow - 1982) do mestre George Romero e escrito por Stephen King, entre outros tantos materiais feitos no período. Era gente de calibre investindo nisso nos anos 80, e o velho Mojicão já experimentara pra ver se prestava lá em 1968. Mas era no caráter de antologia destas pequenas estórias estraçalhadoras que o velho José Mojica Marins se rebolou pra cima. Sem fuleiragem. Um esquema macabro de três narrativas macabras dirigidas pelo mestre. Com a funcionalidade no amedrontar com liberdade em pequenas estórias sem uma grande responsabilidade no encaixar as mesmas tematicamente. O horror já é encaixe suficiente, porém o cinema do cara é característico demais para se engatar através das suas escolhas de temas do destroço humano.

São três lapadas. Em Fabricante de bonecas temos um velho e suas filhas insanas a fazerem bonecas. Tara é um tarado necrófilo viçando com o tesão por um defunto amado em vida e perseguido na morte. Ideologia é um cientista canibal querendo mostrar que o instinto é superior a razão. Esta é uma obra seminal do Mojica com o tema sendo o instinto para a desgraça do ser humano. Seja o fabricante de bonecas que usa os mortos, o cara que sente tesão pela defunta ou o cientista canibal. E o diretor nos mostra isso sem pudores ou falsas fuleiragens. O cinismo é bem na lata. O último curta, ideologia, é uma obra-prima da escatologia e tortura com o direito a um Oãxiac Odéz como o Zé do Caixão propriamente dito, mas com uma motivação ideológica franca e absurda e também antropofágica. Aquele universo é dele. É o monstro que testa o ser sujeito ao limite pro que pode ter como sobrevivência própria daquilo que o move mediante o desespero. E, independentemente do resultado, papoca com linha, carretel e tudo, já que a intenção é provar uma tese e depois se alimentar do objeto da mesma.

Como cineasta maroto que se preze, o mestre já manda um dos seus discursos escalafobéticos acerca da existência humana. “O que somos?” “O final de tudo para o início do nada.” Estas sentenças já deixam claro que universo estamos adentrando. O preparo que ele gosta de aloprar. Situar o espectador num esquema tal que o mesmo já entre no clima, algo que é desferido desde seu primeiro horror, o obra-prima À Meia noite levarei sua Alma (1964), material que tem texto invocado meu no site bem aqui, nas tuas fuças. O discurso do Zé profetiza e conserva a lógica circular das ações e reações, como se o universo girasse de tal maneira, que a mínima demonstração de controle seria uma jumentice programada. E esta circulação de elementos que perambulam na existência fora levada em consideração no questionamento do Zé ser uma espécie de Nietzsche primitivo. Isto no que tange ao conceito de Eu do filósofo, quanto a teoria de eterno retorno do Nietzsche. Porém o Zé não tinha a menor ideia de quem diabos era Nietzsche e nem eu conheço a obra dele o suficiente pra corroborar porra nenhuma do que escrevi aqui em cima. Mas estamos aqui e foda-se.

O fabricante de bonecas. Discurso feito e preparo dado vamos à Antologia do horror. Já começamos numa putariazinha aleatória com dança e curtição, com mãos em bundas e tudo mais, tudo pra justificar uma cena de bar para se desconversar sobre o cerne do dono das bonecas. O fabricante de bonecas é um material invocado por instilar o predomínio dos estupradores sobre as filhas do fabricante, onde somos levados a cabo por uma determinada escolha de narrativa para, logo de cara, crer que esta é uma estória de estupro com aquelas moças sendo elas representantes das bonecas em si. Umas barbies à brasileira? Bosta nenhuma. Estupro? Os olhos das bonecas? A esculhambação não passava dum simulacro para fazer com que os meliantes se lascassem e, assim, soubéssemos como aquelas bonecas tão elogiadas seriam tão reais. Mojica sempre aloprando nos finais até de suas obras curtas. Bom salientar que esta é uma vitória feminina também. As mulheres sempre foram conhecidas por terem seus papéis relegados à tortura apenas. Aqui elas arquitetam desgraça.

Tara. Aqui Mojica já vai buscando um experimento outro na parada. Sempre com a sua falta delicadeza contrastando com as escolhas musicais, que desde a abertura de todo este troço lá atrás nos primeiros créditos, já mete um tom de religiosidade profanada pela imagem, aqui neste segundo curta segue pelo ludismo de seu farsesco inocente protagonista. É um cinema ambíguo. De figurações contraditórias. Um suposto vendedor de balões (não vi ele vendendo nenhum, ora marrapaz) se apaixona por mulher e a persegue e encontra seu sapato e busca a devolução, numa espécie de cinderelismo dos pobres com um príncipe podre que de nobreza porra nenhuma tem. A morte. Necrofilia. Sem palavras. Fotografia estourada. Sim, é isso mesmo. A mulher morre e o cara dos balões vai lá e futrica sexualmente o corpo da defunta, e sem diálogos no curta inteiro. É uma parada persecutória tesuda e doentia bem introspectiva. Tesão pelo cadáver. Antes disso uma cena de velório e enterro. O ritual da morte sempre presente na obra do Zé. Ora, o cara tem no coveiro seu personagem chave, então nada mais justo e oportunista que isto. O sacro e o profano. O sapato e a putaria. O cara assedia um cadáver dentro de uma questão de instinto doentio, mas não sem acometer a morta de ter devolvido seu sapato pelo príncipe dos balões e mortalha. Tesão dado é tesão cumprido. Com reza e tudo. Em cima das santas e santos.

Ideologia. Instinto ou razão? Tortura e desespero. Oãxiac Odéz (manjem que é Zé do Caixão contrário) é o torturador e cientista da vez. O leriado consiste na tese de que o instinto venceria a razão ao final, e que o indivíduo ao fim não sucumbiria ao instinto propriamente dito, mas que vive por ele. O que é uma putaria malacosa, já que o professor tinha em mente que conseguiria este efeito torturando os negativistas de sua teoria. Claro que ele não poderia expor isto em público, já que o início da questão era por exposição em um programa televisivo.   A experiência. O teste Final. O professor oferece uma oportunidade de começo, mas já com uma armadilha armada para torturar um casal até o limite durante 7 dias, usando este período para, além de submeter tortura àquelas figuras, também provar a todos seus posicionamentos de ser humano nascendo com rompante instintivo e no fundo sempre voltando a ele. A lógica circular do discurso inicial encaixa aqui.

A intenção do Zé era soltar-se de seu personagem principal através de estórias apresentadas num universo pertencente ao mesmo. Claro que o Mojica meteu seu Zé do Caixão nada disfarçado, e agora com outro objetivo e com um recurso final antropofágico. Sim. O doutor queria provar que o instinto sobrepuja a razão e coerentemente por ele assim vive mantendo seu canibalismo recém descoberto pelo espectador logo antes de subirem os créditos. Mojica sempre arruma um jeito de meter alguma desgraça final antes dos créditos aparecerem. Deve ser uma mania dele. E que mania deliciosa. E como adendo temos o uso das falas de Deus do antigo testamento na boca do Oãxiac Odéz ao discursar sobre a criação da terra com o intuito de torturar as vítimas. Zé sempre aloprando com a reza carola. O instinto vence. O que a galera gosta. Esse bicho manjava demais de horror.

O mestre animalesco Zé do Caixão busca aqui impor o aterramento a sua maneira num intuito de buscar experimentações em seu cinema que não se restringisse a sua trilogia original – À Meia-noite Levarei sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967) e Encarnação do domínio (2008). Ora, o esquema do Zé do Caixão era sensacional. Sua busca pela imortalidade do sangue. Então a solução foi meter a alma do personagem no projeto em questão, usando do artifício da antologia para manter o personagem vivo, além do professor Oãxiac Odéz, que é uma versão do Zé. O mestre vem a experimentar sem tirar sua grande criação da pauta para fazer crescer seu universo. Experimentando cada vez mais. Algo que veríamos nos processos de metalinguagem obtidos mais a frente com Ritual dos Sádicos ou o Despertar da Besta (1970) e Exorcismo Negro (1974). A esperteza dele é manter o personagem a espreita. Na boca do povo e no sangue do cinema.

A criatura humana é a doença. A ideologia. O instinto. Elemento perigoso. A desgraça do mesmo. 1. Estupro e assassínio. 2. O tesão necrófilo. 3. A primordialidade do instinto desenfreado. O fabricante de bonecas. Tara. Ideologia. São três mini esquemas separados em escolhas narrativas do asco, mas que se complementam pelo primitivismo do instinto do ser. O horror na acepção do termo como fundação contígua do gênero existe na intenção de se fazer mal ao próximo. Por um tesão, vontade, esquema, desrespeito, desvinculação, destroço e os caralhos. Independentemente de que mangofa for, o instinto de matar ou sobreviver está ali. O ato final. Claro que existem subversões. O instinto é tido como definição animal e nós figuras com cerebelo bem funcional os controlamos por questões de convívio social. Isso não cabe aos estupradores; ou ao velho e suas filhas; o vendedor de balões necrófilo; ou o professor e suas cobaias. Em algum momento o ser humano vai ser vencido pelo instinto. Pelo primitivo. Então porque esconder isso? Tanto que a importância de o episódio final ser Ideologia é perfeito. É a libertação dos instintos. Uma fase a mais. E tudo isso é encoberto por vários elementos pra enriquecer o mal. Seja no sadismo do professor que se regozija com suas experiências ou na satisfação do velho em matar os estupradores. O instinto é primordial e perigoso se liberado totalmente, mas isso depende das porras das nossas escolhas. Bom apetite, diz o Mojica. Segura aí o teu instinto animal que lê.

“Atração e repulsa por aquilo que está ao redor de nós.”

Com toda certeza.

Texto integrante do Especial Zé do Caixão
Partícipe do Especial Abrasileiramento Apropriador do Halloween

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