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Críticas

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Guerra Civil e microguerra do desejo.

9,5
O texto pode conter detalhes sobre a trama

Logo no começo de O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled, 1971) de Siegel, um tom perturbador toma conta; tão perturbador que quase preferimos não acreditar nele: após uma introdução narrativa em fotografias, dos preparos armamentistas de uma guerra civil aos destroços que dela resultam, um outro tipo de saldo, ou, ainda, um saldo crível e lógico subitamente misturado a um inesperado, e de todos os modos (circunstanciais, éticos, morais) interdito: o soldado yankee, ferido em território inimigo, beija a garota de doze anos que o salva, tanto para silenciá-la, por fim, diante da proximidade dos soldados adversários (só dele, a princípio), quanto para de algum modo agradecer, e ainda assim todas as intenções ficam obscurecidas pelo susto da garota, que é também o nosso. Mas se segundos antes ela tinha comparado a quase morte do soldado àquela do pai, não tendo este resistido, é só para delinear a primeira das particulares relações que o duvidoso soldado terá com todas as mulheres da instituição de ensino que o recebe, ainda que contra todas as vontades possíveis. E ainda assim, seja pelo sabor do elemento masculino, pela quebra à monotonia clara e associada aos estudos enfadonhos de francês e etiqueta, seja pelo furor da eventualidade e do acaso ou pela bondade, o intruso é instalado.

Se alguma solidez à obra de Siegel é prevista, esta fica somente nos contornos daquilo que a presença de Eastwood logo “instala”; é algo que simplesmente se torna mais claro, mas não necessariamente muda: passa a se delinear, entre o dentro e fora, entre a relação de livre saída anteriormente tida, e as saídas das garotas, agora, uma clarificação da relação entre o universo de fora e as relações de dentro: a guerra, elemento eminentemente masculino, não só parece mais ameaçadora às garotas porque sua visualização mais horrenda se presentifica – um homem à beira da morte é trazido até lá –, mas porque, uma vez que a decisão de mantê-lo, e não entregá-lo de vez, tenha sido tomada, as próprias garotas se tornam estranhas ao Fora: não podem ser descobertas, e a qualquer custo. Por que mantê-lo ali? Por empatia e solidariedade? Ou pelo desejo que os breves monólogos interiores vêm arrastar para o Dentro? Ora, Siegel não toma muito tempo para inserir um novo elemento relacional: como que involuntário, o flashback da protetora e diretora diz que a presença do homem a atiçou com um desejo que só havia sentido, antes, provavelmente, na relação incestuosa com o irmão.

São talvez esses brotamentos, ou depósitos de projeção que as mulheres colocam sobre o homem, que mais demarcam a fluidez em ritmo crescente e sensual da obra de Siegel – porque é uma obra eminentemente sexual, não há por que escondê-lo. Seja uma figura paterna, a lembrança da única relação prévia de desejo, a possibilidade de primeiro amor, ainda que diante da desconfiança, ou o explícito e malicioso desejo sexual da serpenteante Carol, o que Eastwood a princípio vem representar é o todo-relacional dos homens lá de fora: o perigo do proibido (a diretora devia saber, por experiência, que a repressão sexual é mais produtora de desejo do que qualquer coisa), os homens mortos, os desaparecidos, os inexistentes e os sonhados. E o efeito de teia que as relações escondidas vêm sobrepor, agora, não tanto à monotonia quanto à falta do elemento masculino, é de um espelhamento que, não bastasse ser narrativamente estimulante, é esteticamente das coisas mais primorosas que os escândalos da década de 70 regurgitaram.

“A dor e o prazer andam juntos, às vezes”, dirá o soldado à diretora, e paulatinamente a câmera de Siegel vai dando corpo a esses paradoxos internos: ele nunca ficará tempo demais na escola, e, no entanto, sua presença é desejada pelo conjunto das forças inconscientes e conscientes de quase todas, até que, se ele de fato ficará, fazer da câmera um olho voyeurístico é de primeira necessidade: numa só cena, envolvendo todos os tipos de olhares, Siegel consegue filmar o movimento malicioso de uma das internas, a desconfiança não certificada de uma outra (através de pequenos detalhes, como um vestido semiaberto que só nós conseguimos ver), os ciúmes recém-descobertos da primeira, através de uma pupila que bisbilhota, uma promessa romântica de amor, uma traição efetivada através de um símbolo (a peça de roupa que acusa a presença de inimigos naquele território), e, ainda, um momento de breve cálculo estratégico da desvantagem para enunciar uma luta, ao que tudo finda com a prova primeira do puro desejo verbalizado através da proteção, e anunciação da mais uma mudança: ao proteger o homem, a diretora toma-o não como infiltrado ou ferido, não mais como inimigo ou presença incômoda: McBurney torna-se quase objeto de fetiche – e agora não só por uma, mas por (quase) todas.

Dali em diante, o sonho profano que mistura o sexo e o sacro, simulando a pintura de temática religiosa pendurada logo ao lado, a desconfiança mais assentada e o amor mais ingênuo, a maldade mais inconcebível e o desejo mais duvidoso, a admiração e amor infantis e o assombro diante das suspeitas: todas as duplicações internas sofridas pelas mulheres, ao que poderiam relançá-lo numa microguerra de interesses, o que de fato acontece brevemente, na verdade direcionam a trama para a quebra mais inesperada, tudo modulado pelo tom e veiculado a partir do eixo que sempre importou, através do que estava visível o tempo inteiro: de soldado ferido e conquistador inescrupuloso, de metamorfo que segue as leis do desejo que nele depositam, transmutando-se em todas as figuras que àquelas mulheres tinham sido amputadas pela experiência ou pela morte, como se bem debaixo dos nossos narizes o tempo inteiro, é ele que se torna, dos prisioneiros, o mais impossibilitado possível: ainda que lhe tolham cada vez mais a resistência física, foi precisamente por ter solicitado a atenção de todas que ele se tornou prisioneiro do desejo delas – um desejo que, se não se modifica com o passar do tempo, certamente se contamina pela fúria de todas.

Porque, como pôde um soldado, diante de uma microguerra, seduzir todos os inimigos de uma vez? Faltou-lhe alguma estratégia ou perícia no campo? Aliás: teria ele, de um modo ou de outro, alguma chance de escape, instalando-se por opção própria, e depois por aprisionamento dúplice, num território diante do qual não há experiência ou preparo possíveis? Por acaso alguma pequena vitória, como seus sorrisos conquistadores parecem confirmar com deleite, não levaria a um inevitável deslize, dez vezes pior do que os louros que acreditou poder ganhar? Retorna a relação Dentro-Fora em mais uma faceta: é por trás dos muros e paredes, ou pior, dentro do corpo, a nível extra-microscópico, que a atividade pulsional se ordena. Do amor ao ódio, da paixão à morte, do flerte à vingança, os dois lados da Guerra Civil se tornam pequenos ao lado da profusão inconstante dos sentimentos, também esta articulada como uma estratagema bélico: ainda que tudo pareça claro às superfícies que se tocam (os beijos, as mãos, o salvamento, as bofetadas, os seios), subjaz às vistas o fator humano. Tão trágico quanto a Guerra, segue, entretanto, o fluxo próprio da atividade libidinal. E, no que diz respeito a este, o cinema já mostrou, com praticamente todas as suas histórias, não haver contorno possível.

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