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Estratégia da Aranha, A

(Strategia del Ragno, 1970)
7,1
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Aranha em Labirintos

8,5

Não precisa ir muito longe para entender que a grande marca do trabalho de Bernardo Bertolucci é a ousadia. Graças ao seu profundo interesse em filmar o sexo — ou as “especificidades” sexuais, seja no exitoso O Último Tango em Paris (The Last Tango in Paris, 1972), ou, por exemplo, em La Luna (1979) —, muitas pessoas acabaram por restringir sua obra a somente este aspecto, o que é compreensível pelo alvoroço causado, mas uma redução bastante superficial se vista apenas como uma permanente busca de chocar o público.

Sobrava ousadia porque emanava confiança de suas mãos. Além da evidente grandiosidade de O Conformista (Il Conformista, 1970), optar pela adaptação de um texto de Jorge Luís Borges, um dos autores mais complexos da Literatura Universal, prova que o que realmente impressionava na carreira de Bertolucci, mesmo com tão pouca idade, era segurança, maturidade e domínio tanto estético como narrativo para lidar com temas, no mínimo, arriscados para qualquer jovem cineasta.

Do “tema” literário à estratégia cinematográfica

O autor argentino, em seu célebre conto O Tema do Herói e do Traidor (Tema del traidor y del héroe, 1944), cria um narrador que anuncia a criação de um argumento baseado numa representação teatral. Alerta, ao mesmo tempo, que faltam detalhes, correções e zonas da história que não foram revelados, mas, mesmo assim, insiste, com os poucos detalhes que possui, relatar ao leitor a versão possível dos fatos. Este “autonarrador” revela-se no ato da escrita ao mesmo tempo em que lê as referências para o próprio material que escreve. Não tem medo de revelar suas debilidades narrativas por conta de um texto que desde a sua origem é falho.

Em A Estratégia da Aranha (La Strategia del Ragno, 1970), Bertolucci se apodera desse autor borgiano, que prefere relatar ao determinar os fatos. Muito mais preocupado na construção do relato do que em estabelecer um caminho narrativo coerente. O diretor italiano, no alto dos seus 29 anos, tomaria um dos autores mais complexos da história da Literatura não somente como inspiração para o roteiro, mas como influência estética para sua mise-en-scène.

O filme caminha em labirintos de flashbacks dominados pela presença constante do fantástico. Athos Magnani, protagonista vivido por Giulio Brogi, almeja conhecer melhor o seu pai, herói antifascista italiano. Sua memória estabelecida a partir da figura mitológica do pai se constrói e se reconstrói a partir de sua interpretação dos mais diversos relatos e experiências que vive na cidade natal de seu genitor.

Precisamente como na obra do mestre argentino, na qual Ryan, o bisneto de Killpatrick, investiga a memória de seu bisavô, um famoso herói irlandês. A base do argumento imaginado pelo narrador criado por Borges serviu de livre inspiração, como anunciam os créditos iniciais, para a construção do filme. O roteiro escrito por Eduardo de Gregorio, Marilù Parolini e o próprio diretor tratará de trazer a busca pela verdade de seu antepassado para assim descobrir a si mesmo.

Estratégia essa extensivamente utilizada na História da Literatura. Exemplos não faltam, desde Telémaco na Odisseia (VII a.C), de Homero, até chegar em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo. Desde o princípio, sabemos que a proposta de Bertolucci será tomar o que lhe interessa do conto de Borges. O argumento do filme se estabelece no centro nervoso do conto: será este herói um homem incorruptível e completamente de acordo com o que diz a lenda escrita?

A obra de Borges por si só é um mundo de referências e cada um desses hipertextos leva o seu leitor a diversas camadas de interpretações. O famoso labirinto de Borges não é físico como o de Stephen King transposto por Stanley Kubrick em O Iluminado (The Shining, 1980), mas sim um enredo de símbolos desde o literário, a passar pelo histórico até o teológico.

A construção do labirinto

O caminho para desvendar esse mistério, ou melhor, para enredar o espectador nesse mistério não podia ser o mesmo; afinal, o texto original conta com 3 páginas, enquanto que um roteiro normalmente supera e muito esse número de folhas. A escolha pela adaptação livre permitia que a película centrasse o espectador no foco destacado anteriormente, esquecia a impossível fidelidade e acrescentava a possibilidade de uma conversa simbólica constante com o original, por meio dos mais variados elementos cênicos.

Pensar, por exemplo, o “autonarrador” de Borges que não narra uma história, mas que imagina o seu argumento, podia ser facilmente adaptado a uma voz off simples. No entanto, o que Bertolucci deseja é o efeito de espelho no caminhar do leitor por esse labirinto. Para isso, escolhe a câmera como narrador, ou, para ser mais preciso, a câmera como observadora invisível, um narrador implícito — como bem teorizou Vsevolod Pudovkin.

A direção de fotografia do grande Vittorio Storaro é ora conduzida de forma a revelar pistas narrativas, ora com o intuito de esconder ou mesmo confundir. Os movimentos de regressão, zooms, planos em 360 graus ou mesmo quando a câmera toma a perspectiva de uma estátua, assim se propondo como uma condução de direção marcada por labirintos em forma de espelhos. Tudo pode ser narrado e refletido pelo caminho de observação do espectador, mas as escolhas pertencem ao diretor. Por meio dessa “observadora invisível”, é mostrado o que lhe interessa e como interessa, cabendo a nós adentrar nesse artificioso mundo, possível apenas no gênero fantástico.

Bertolucci negocia constantemente com a estética do autor argentino, utilizando alguns elementos literários que são característicos da obra de Borges. Repete símbolos como coelhos, melancias, fotografias e o prato de tripa. Essa lógica repetitiva soma-se ao espelho desenvolvido pelo narrador e amplia o efeito circulatório em torno desses elementos, como se tudo já tivesse ocorrido, ou se aquilo tudo não passasse de mera representação do passado.

A picada da aranha

A leitura do diretor italiano consegue levar a obra de Borges a um novo lugar, a um lugar onde só o cinema, como expressão artística, poderia proporcionar. A Estratégia da Aranha é o “autonarrador” em forma de câmera cinematográfica a transformar um argumento imaginado ao teatro num outro ambiente histórico, no epicentro do fascismo italiano, sem deixar de desviar o foco da discussão central do conto original.

No final das contas, fica claro que o “tema” é extremamente transversal ao tempo. Vivemos num mundo de mitos, alguns históricos e fundamentais, outros vazios e irrelevantes, mas todos, em seu determinado momento, seguidos com fervor, e em alguns casos, com total cegueira. Borges, no começo dos anos 40, vai colocar uma interrogação em todo esse processo e problematizar a escrita da História por meio de sua Literatura. A fundação da figura de um mito é quase sempre maniqueísta, mesmo com “a melhor das intenções”, e nocivo porque sempre vai de acordo com quem e para quem escreve o relato/estória.

A estratégia de Bertolucci é tomar para si essa interrogação alegórica sobre a formação de um mito na história da humanidade. Tal qual uma aranha, preocupa-se com o método que assassina a mosca; diz ao leitor que a graça não está na pergunta, mas sim em como é feita. Atira-o numa teia de aranha cheia de dúvidas, da qual a única certeza é que no mundo animal não há heróis nem vilões, mas há sempre motivos para construir a figura de um desses.

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