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Críticas

Cineplayers

Surpreendentes sinais do fim.

8,0
Poucos gêneros cinematográficos, ou sub-gêneros, me provocam mais arrepios que a biografia. Seja qual for o biografado, talvez essa seja a forma mais rápida de conseguir atenção para seu projeto. Sem precisar entregar um material muito relevante, o trabalho maior será conseguir um astro interessado no retrato a ser pintado, com alguma semelhança (ou nenhuma, a caracterização faz o resto do trabalho, ou ele inteiro), e que ele esteja em vias de se tornar o 'próximo na fila da consagração hollywoodiana'. Integridade artística, propósito dentro de uma filmografia, teor de necessidade, nada disso costuma ser uma obrigatoriedade quando um produtor apresenta esse tipo de projeto. Anualmente vemos os mais irrelevantes filmes sobre as mais diversas figuras, com diferentes níveis de importância na memória coletiva, e quando o filme novo do diretor de Victor Frankenstein é uma biografia, fica subentendido as motivações por trás de tal empreendimento. Dito tudo isso, as biografias cinematográficas ganham um caráter de exceção com Estrelas de Cinema Nunca Morrem.

Se o diretor Paul Mcguigan não inspira confiança, a realidade é que por esse mesmo ponto de vista seria fácil vir dele um 'melhor filme', tendo antes desse novo longa 7 exemplares espalhados em 20 anos de carreira, mas o jogo não é tão banal assim. A biografia da atriz Gloria Grahame é dotada de um clima melancólico, tristonho e quase depressivo por toda sua duração, e o diretor consegue equilibrar esse clima com uma espécie de desconstrução da ditadura da felicidade que impera hoje, e propor um olhar condescendente sobre a tristeza e sobre os gatilhos emocionais que liberam tais sentimentos possam também liberar beleza, inclusive fílmica. Com muita delicadeza, uma dose de charme e algum raro humor, o filme não tem vergonha de mostrar os malefícios da passagem do tempo para quem se ancora nisso.

Parece um caso raro de acerto impensado, e a ajuda do roteirista Matt Greenhalgh pode ter tido papel crucial no produto final. Greenhalgh é um especialista em boas biografias e recortes específicos de vidas estelares. Veio da pena dele os roteiros de Control e O Garoto de Liverpool, respectivamente as histórias por trás do líderes do Joy Division e dos Beatles. O escritor pegou dessa vez uma curva descendente e depois de centrar fogo no surgimento desses artistas, foi conversar com o futuro de Gloria, ou especificamente seu canto do cisne, já numa espécie de exílio britânico para protagonizar uma montagem de The Glass Managerie e tentar um último resquício de brilho longe de casa. O roteiro é baseado nas memórias de Peter Turner, um jovem ator que abrigou Gloria em sua estadia inglesa, bem mais que em sua casa apenas. O cuidado de Greenhalgh no desenho das personalidades dos protagonistas é um achado, além de conduzir o filme com uma sobriedade decadente que parece impedir o sol de entrar, pela tela e pelo texto.

A fotógrafa polonesa Urszula Pontikos trabalha com extremo bom gosto por esse passeio dark sobre almas atormentadas pelo passado, pelo futuro incerto e pelo presente fugidio, trabalhando com tintas ocres nas lentes e conseguindo um resultado surpreendente, que nada a aproxima dos seus brilhantes trabalhos em Weekend e Lilting, tão luminosos; sua experiência em ambientes fechados e em atmosferas reprimidas a capacitaram para o trabalho, realizado com esmero. McGuigan trabalha com o capricho de Urszula e com a experiência de Eve Stewart nos cenários, conseguindo o resultado necessário para contar sua história de amor triste e construindo uma ambiência de profundo pesar, mesmo quando fulgurante. 

Para estrelar tal trama tão introspectiva, que espelharia o ocaso de uma vencedora do Oscar ao início de um jovem ator sem perspectiva, era primordial que o casal protagonista estivesse em fina sintonia com aquele universo, em imersão total. Pois é exatamente nesse estado que encontramos Annette Bening e Jamie Bell, provavelmente nos maiores desempenhos de suas carreiras. De trajetórias levemente similares às dos biografados (falta a Annette o boneco dourado que Gloria conseguiu), é ela também uma estrela não-valorizada a contento no cinema americano, e ele um jovem astro que ainda não alcançou o lugar que já deveria ser dele há tempos. O espelhamento invertido entre personagens encontra eco real na vida, o que talvez tenha imbuído ambos de uma urgência emocional que os arremessou a uma jornada interior, trazendo pra fora o mínimo. Annette já vinha numa espiral de imersão e é um hoje uma atriz infinitamente superior a 15 anos atrás, e a prova está aqui; Gloria está nos seus olhos, nos seus gestos, na sua postura e no seu cansaço gradativo, que a transforma numa espécie de estrela cadente em forma humana. Já Jamie é um jovem ator que mostrou ao que veio na estreia em Billy Elliot, e tem aqui um grande desafio que é ser o esteio de uma mulher e também ele poder ser uma figura frágil em busca de atenção.

Fechando o quadro de colaboradores com J. Ralph (compositor indicado ao Oscar só essa década por 3 vezes) e Nick Emerson (montador responsável pelo excepcional ritmo em Lady Macbeth e Starred Up), Paul McGuigan conseguiu um notável feito de sobressair num sub-gênero tão ingrato tendo ele também resultados tão infelizes na carreira, talvez graças a esse time tão feliz na química coletiva. Ainda que não tenha conseguido se livrar das obrigações tão enfadonhas de uma biografia e precise prestar contas de lidar com os tais 'fatos reais' para levar adiante sua narrativa, o diretor acima de tudo conseguiu construir e manusear um estado de espírito tão comum a vidas a deriva de suas vontades e capacidades, uma espécie de consciência da finitude em vida, através de sons, cores, olhares e expressões.

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