Existe uma força que surge quando alguém, até então limitado às margens, decide tomar as rédeas da própria narrativa. É esse sopro de transformação que move Explode São Paulo, Gil, novo trabalho da diretora Maria Clara Escobar, que parte de um território extremamente íntimo (sua própria casa) para construir um retrato sobre afetos, desejos e, sobretudo, liberdade.
Logo no primeiro plano, o filme nos apresenta Gil, mulher negra, periférica, faxineira, epiléptica, depressiva e sapatão, como ela mesma se define. Mas antes que qualquer rótulo se sobreponha, é a sua humanidade que ocupa a cena. Sentada no degrau da área de serviço, ela encara a câmera, meio sem jeito, meio desconfiada. Mas não demora para que a fala transborde. E o que vem desse fluxo de palavras é um relato potente sobre as dores e delícias de quem, há muito, aprendeu a se mover entre mundos que nem sempre a enxergam para além da função que exerce.
Se no elogiado Os Dias Com Ele (2012) Maria Clara se debruçava sobre a figura do próprio pai, aqui, seu olhar se volta para alguém que, diariamente, atravessa sua vida de forma quase invisível: a trabalhadora doméstica. Só que Gil não aceita mais essa condição de invisibilidade. Tem sonhos, vontades e, acima de tudo, uma inquietação que a impele a ocupar espaços outros, inclusive o da música, sua grande paixão. A pergunta que ela lança, carregada de humor e desconforto, sintetiza o conflito central: "E se eu fizer sucesso? Quem vai limpar sua casa?".
É a partir dessa provocação que o filme se desdobra. Acompanhar a jornada de Gil rumo ao palco, simbólico e literal, é encantador e incômodo. Encantador porque ela, de fato, brilha. Incômodo porque, em meio a esse processo, surge um embate velado entre quem filma e quem é filmada. Até que ponto a diretora está disposta a ceder espaço? E, sobretudo, que espaço é esse que se disputa?
Essa relação, nem sempre bem equilibrada, reverbera na própria construção formal do longa. Por vezes, o filme parece se perder em escolhas que, mais do que construir camadas, esticam situações até o limite da paciência. São longas sequências que alternam entre o riso desconcertado e o desconforto absoluto, especialmente quando a exposição da vida de Gil beira o constrangimento. A montagem frouxa não ajuda a organizar essas tensões e, ao invés de potencializá-las, parece dispersá-las.
Mas Explode São Paulo, Gil é, acima de qualquer coisa, sobre uma mulher que se recusa a ser apenas coadjuvante da própria história. E isso, por si só, é maior do que qualquer deslize formal. O filme acerta quando entrega a ela o microfone, literal e metaforicamente, e permite que sua voz reverbere para além dos limites da casa, da cidade e do filme.
Talvez falte à realizadora o distanciamento necessário para compreender que, em certas histórias, menos é mais. Quando Maria Clara sai de cena, Gil cresce. E seu brilho não precisa de filtros, nem de condução. É ali, no cruzamento entre a dureza do cotidiano e o desejo inabalável de cantar, que o filme encontra sua verdade. E mesmo que tropece nas próprias intenções, ainda assim deixa marcas. Porque, no fim das contas, quem realmente explode é Gil. E isso ninguém tira dela.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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