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Críticas

Cineplayers

O expresso como analogia de um sistema político, o sacrifício e os trejeitos exuberantes de Bong Joon Ho em seu primeiro filme na América.

8,0

ATENÇÃO
o texto a seguir contém detalhes da trama!


Mais do que o paradigma social forjado pela transmutação da sociedade humana em um trem que viaja em direção a lugar nenhum, O Expresso do Amanhã demonstra o quão a sério Bong Joon Ho leva sua ação e seus maneirismos. O filme é muito melhor quando os confrontos são deflagrados ou quando a narrativa cineticamente linear se permite ser invadida por pequenas imagens e momentos que enriquecem a experiência cinematográfica geral.

O aspecto principal desta experiência diz respeito à analogia criada entre a sociedade do trem e a sociedade humana capitalista como conhecemos hoje, pautada pela divisão de classes e por mecanismos pesados de controle e opressão que garantem a manutenção dessa ordem. A história do filme é o motim dos miseráveis em busca de controlar o trem, extinguindo a ordem desigualitária vigente.

Em termos de alegoria social e diante da analogia que o filme constrói enquanto premissa, Snowpiercer parece propositalmente posicionar-se de maneira ambivalente e confusa em relação aos lados apresentados. Há os 99%, espremidos e violentados cotidianamente no último vagão do trem, e há os 1%, gozando de espaço e conforto que uma infraestrutura fundamentalmente desigual foi capaz de criar.

As noções de sociedade, liderança, revolução e liberdade são fortemente questionadas pela narrativa de Bong, desde o momento seguinte à deflagração do motim. Condenados por mais de quinze anos a consumirem como alimento uma barra de proteína gelatinosa, os miseráveis conseguem romper algumas portas de vagões, chegando àquele destinado a fabricação dessas barras. Apenas Curtis (Chris Evans), porém, chegou a descobrir do que as barras são feitas. Após olhar pela portinhola da terrível máquina e perceber que o alimento é criado a partir da trituração de insetos mortos, Curtis, afim de proteger seu povo dessa incômoda verdade, guarda a informação para si.

Essa ação foi composta da mais benévola boa intenção, mas esse protecionismo já se configura como um mecanismo de controle, antecipando questões que se aprofundam ao longo da jornada dos rebeldes, mais especificamente uma: a de que a cabeça e a cauda, para usar as terminologias adotadas na história, exercem funções espelhadas, bastante similares e inversamente proporcionais.

Curtis, que acobertou a verdade sobre as barras de proteínas por temer que a verdade fosse terrível demais para ser exposta aos seus pares, pode não ter também o estômago para suportar a verdade prestes a ser revelada sobre a sociedade do trem. Ao tomar conhecimento do paralelo existente entre os líderes da cabeça e da cauda e ser convencido por Wilford (como, talvez, muito de nós também fomos) de que funções sociais são fundamentais para que a sociedade humana possa continuar a existir, Curtis encontra forças suficientes para acabar de vez com o trem: não há sentido em se ter uma sociedade se aquele for o preço a ser pago para que ela continue a existir.

A trajetória de HERÓI de Curtis é altamente ambivalente, inclusive. Durante seus primeiros meses no trem ele era um assassino sem misericórdia até que foi salvo por Gilliam (John Hurt), que se tornaria mais tarde o líder dos miseráveis. Passados quinze anos, Curtis é claramente o sucessor de Gilliam na liderança daquele povo, mas recusa-se a aceitar o “cargo” porque ele, segundo o próprio, “possui dois braços bons”.

Aí existem dois momentos que mostram um pouco do percurso que Curtis realiza durante o filme. O primeiro, quando ele é obrigado a, no meio de um confronto, fazer uma escolha: ele pega a ministra Mason como refém ao custo da morte de Edgar (Jamie Bell, mais conhecido como BILLY ELLIOT)? Ou adia a revolução, salvando a pele de seu protégé? Curtis não pestaneja, agarra Mason pelo pescoço e assiste Edgar ser degolado pelo inimigo.

Um outro momento acontece já no final do filme, quando Curtis resolve abrir mão da manutenção da vida no trem, resgatando o pequeno Timmy (Marcanthonee Reis, belíssimo nome, belíssimo afro) da escravidão. Para resgatá-lo, porém, Curtis despende tal força contra as engrenagens das máquinas que encarceram a criança que, no processo, perde o braço.

Inicialmente, ao ver Curtis abrir mão da vida de Edgar sem hesitação, interpretei que ele realmente não deveria ser o líder dos rebeldes, por atropelar os meios para alcançar o fim. De alguma maneira, a luta dos miseráveis do trem parecia investida, para mim, de uma elevação moral que os rumos do filme tratam de esmaecer. Agora, já penso diferente: a capacidade de abrir mão da vida da pessoa que, para ele, era a mais importante de todas é justamente a qualidade de líder mais evidente de Curtis. Perder Edgar é um sacrifício muito mais eloquente que um mero braço. Curtis não hesitou porque não era a sua vida ou a vida de Edgar que estavam em jogo: era a dignidade de todo um povo.

A morte de Edgar, dessa forma, é uma antecipação à condenação de toda da escassa humanidade em O Expresso do Amanhã: da mesma forma que Curtis abriu mão de seu protégé, ele abriu mão da vida humana no planeta porque todas as evidências mostravam que essa era a coisa CERTA a se fazer. Para o filme, o homem deve realizar o sacrifício da autodestruição porque os fundamentos da manutenção da vida humana no trem são terríveis demais para serem perpetuados.

Caso o plano de fundo distópico seja misantropia demais para algum espectador, ele ainda encontrará em O Expresso do Amanhã motivos bons o suficiente para encarar a sessão. O que temos aqui não é uma decupagem de ação americana, genérica e desimportante. Bong Joon Ho não é tão reconhecido pelas cenas de ação quanto pelo torque dramático em seus filmes, mas apresenta em Snowpiercer algo digno da escola coreana de cinema de ação.

Isso não quer dizer somente que as cenas de ação NÃO são filmadas e coreografadas de um jeito que você pense “puxa vida eu poderia realmente estar botando o sono em dia agora”, porque aqui elas com certeza são muito bem filmadas e coreografadas; isso não quer dizer somente que Bong usa ação quando deve usar, e usa o drama na maior parte do tempo, porque normalmente é assim que muitos e muitos filmes de ação devem ser; mas acho que o verdadeiro apelo em O Expresso do Amanhã está, de fato, nas coisas pequenas.

O encolher dos lábios esqueléticos de Mason (Tilda Swinton, famosa por TOMAR PARA SI os filmes em que participa); o lutador marcial vagamente latino, talvez, cheio de tatuagens e katanas (Luke Pasqualino, que é na verdade inglês); os soldados do trem que, antes de irem para cima dos rebeldes, tiram inexplicavelmente um BAGRE de lugar nenhum, cortando-o transversalmente; os assassinos russos aparentemente homossexuais (ou no mínimo bastante afetivos entre si), um que morre bastante cedo e outro que é provavelmente imortal; as feições contorcidas e compulsivas dos rebeldes; a professorinha grávida (Alison Pill) que venera religiosamente Wilford e que retira uma UZI de dentro de uma cesta de ovos cozidos; e, principalmente, Nam e Yona (Song Kang-Ho e Ko Asung, respectivamente), os coreanos alucinantes que, rodeados de um elenco majoritariamente americano/inglês, conseguiram a proeza de estarem bem à vontade nos papéis que carregam a maior potência carismática do filme.

Nam e Yona parecem, inclusive, carregarem o combustível de Bong Joon-Ho: eles fizeram o caminho da transição com sucesso. Saíram da Coreia e entraram em Hollywood pela porta da frente como que páreas embriagados, dando pontapés e gritando loucamente cânticos que evocam suas tradições. Caminham pelo filme conscientes de sua condição estrangeira, transpirando-a e tirando a prosperidade justamente dessa transpiração.

O sincretismo entre a trajetória de herói de Curtis e a distopia misantropa do expresso mantém as engrenagens do filme funcionando. Assim como os personagens, que caminham linearmente, vagão após vagão, para frente, o filme não retrocede nem para. Embora a ação de fato seja engarrafada em sequências, a potência dos confrontos é certamente embalada pela atmosfera dramática que conduz o filme. O Expresso do Amanhã é melhor que a maioria das distopias e action flicks recentes porque é, acima de tudo, composta de uma gama de PRESENÇAS multicoloridas que agregam ao filme.

A jornada entre vagões possibilita que a experiência de se assistir ao filme seja pautada pela quebra de certos esteticismos: da atmosfera cinzenta dos primeiros vagões, passando pelas cores alegres da sala de aula infantil, pelo assombro do vagão-aquário, a opulência dos vagões-boates e culminando no vagão-final, a cabeça do trem, o salão insólito e metálico de Wilford. Uma experiência que é muito similar a de um videogame, e digo isso sem o menor tom de crítica, pois as quebras são pautadas pela consistência geográfica proposta pela narrativa, nunca sendo mero artefato visual isolado.

Ao espectador é apresentado um meta-final, significado de acordo com a visão de mundo pessoal de cada um. Para os pessimistas, o isolamento absoluto e todas as condições adversas possíveis tornarão o fim completo da raça humana inevitável; para os otimistas, o florescer da vida e o recomeço, na esperança de que o Homem se saia melhor na segunda vez.

Comentários (5)

Citizen Kadu | domingo, 22 de Maio de 2016 - 15:35

Cara.O Urso Polar não nega a posição otimista ou oferece uma posição pessimista.A aparição do urso demonstra que a vida ainda continua no mundo fora do trem.Apesar de ter achado esse texto maravilhoso discordo sobre a interpretação do final como sendo "meta".

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