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Críticas

Cineplayers

A revolta de Santo Cristo.

8,0

Em dado momento da coletiva de Faroeste Caboclo (2013), uma jornalista que chegara atrasado repete uma pergunta já feita a René Sampaio, sobre as influências do filme, acrescentando – equivocadamente – se haveria inspiração em Django Livre (Django Unchained, 2012), rodado posteriormente. Com gentileza e descontração, ele voltou a responder que, como todo cineasta estreante, não resistiu à tentação de incluir o máximo de referências possível em seu debute no cinema. A informação pode parecer irrelevante, mas o contexto torna a personalidade por trás do filme uma peça-chave para entendimento da qualidade dessa aguardada adaptação.

Em sua década e meia de existência, a banda liderada por Renato Russo arrastou uma verdadeira legião atrás de si. Uma de suas mais icônicas canções, “Faroeste Caboclo” sempre foi apontada por todos como uma música feita para o cinema, embora profissionais do ramo sempre apontassem o projeto como um desafio espinhoso. Talvez a resposta fosse receio pela rejeição parte dos fãs xiitas da Legião Urbana, que se incomodariam ao testemunhar tantas mudanças da versão cinematográfica com relação à letra original. Pois as principais características a emanar do trabalho concebido por Sampaio, o estreante desprendido e bem humorado (para alguns, herético) que confessa não ter se importado em incluir diversas referências na adaptação da canção, são segurança e convicção.

Isso se deve à ciência do cineasta de que mídias distintas também se comportam de maneiras distintas. Se, na música, há a necessidade de rima, métrica e outros aspectos que tornam certos trechos não muito coerentes (o afastamento de João de Santo Cristo de Maria Lúcia é tão abrupto como seu retorno para a amada, por exemplo), a proposta fílmica de Sampaio requeria uma obra mais condizente com a realidade. Do mesmo modo, a crítica alegórica, ampla, por vezes indiscriminada, sugerida por Renato Russo, ganha maior foco no roteiro de Marcos Bernstein (curiosamente, também responsável pelo texto de Somos Tão Jovens [2012]), o que impossibilita um surreal confronto transmitido ao vivo pela TV.

Apesar de dispensar críticas à mídia (acessória) e ao militarismo (obsoleta), presentes no material original, a crônica política e social é pulsante no produto audiovisual. Para tal, Sampaio reconstrói Brasília com admirável exatidão, e Maria Lúcia se torna uma representação da juventude dos anos 80, recém-chegada no Planalto Central por força da carreira política dos pais (alheios aos problemas de adaptação dos filhos), marcada por um senso de deslocamento que, latente no filme e na história, desencadeia não apenas sua entrega à rebeldia e às drogas, mas é estopim para o nascimento da Era de Ouro do Rock nacional (representado na tela com shows de Aborto Elétrico e Plebe Rude). Jeremias representa a inconsequência de jovens entediados que preenchem seu tempo ocioso cometendo graves delitos e comprando sua impunidade de um sistema corrupto - e tal semelhança com o assassinato do índio Pataxó Gaudino Jesus e outros crimes cometidos pela juventudade de alta classe da capital federal não é mera coincidência. 

Nesse cenário, o nordestino João de Santo Cristo é o único negro e pobre. Essa realidade marcada pela discriminação não poderia ser mais contemporânea, e acompanhar a saga de tal protagonista, em tempos em que as minorias da sociedade brasileira têm como representante oficial uma figura declaradamente preconceituosa, torna impossível não torcer pela figura do anti-herói vingativo que ascende na tela (o que, aliás, legitima as semelhanças apontadas pela colega jornalista entre essa obra e o último filme de Quentin Tarantino). Vítima de racismo, o tal não tem medo mesmo e bate de frente com os playboyzinhos da cidade, desencadeando uma guerra entre gangues no maior estilo Cidade de Deus (2002) – o que, aliás, torna curioso perceber a semelhança física entre o João do expressivo, ótimo Fabrício Boliveira e o Mané Galinha de Seu Jorge.

Esse rastro de violência é lastro para uma série de referências a filmes clássicos do cinema. Na mais divertida delas, Jeremias surge como uma versão contemporânea do Tony Montana de Scarface (idem, 1983), o que justifica a atuação por vezes over de Felipe Abib. Numa demonstração de coragem e contundência, René Sampaio reprisa o contra-plongeé clássico de Dirty Harry, porém invertendo sua lógica, colocando o nigga do clássico policial de Don Siegel atrás de uma implacável Winchester 22. Na sequência derradeira, Gustavo Hadba concebe os mais marcantes planos de sua impecável direção de fotografia, numa elegante e divertida referência ao western Três Homens em Conflito (Il Buono, Il Brutto, il Cattivo, 1966), de Sergio Leone (cena que, de quebra, proporciona ao fã mais desatento – como eu – um entendimento do título da música, referente ao duelo mestiço ao final da obra [ainda que uma licença poética permita chamar de “caboclo” o encontro entre um branco e um negro, não um índio]).

Em sua capacidade de fazer inúmeros ajustes para a linguagem audiovisual e contornar problemas do material original (o envolvimento de Maria Lúcia e Jeremias ganha camadas e ainda proporciona uma das opções mais criativas do longa-metragem, com capas de jornal - que estampam manchetes reais - marcando a passagem de tempo durante a prisão de João) sem jamais macular a essência da letra composta por Renato Russo, o diretor René Sampaio transforma a expectativa por uma adaptação correta, numa projeção otimista, em uma obra cinematográfica completa, capaz de existir independentemente e propor discussões relevantes sobre aspectos sociais, políticos e culturais do Brasil, de ontem e de hoje. Uma estreia promissora, em que prova que o cinema de entretenimento nacional pode ser mais que comédias acéfalas, desde que o cineasta tenha a habilidade e a predisposição de aliar gêneros (aqui, ação e romance) à crônica social.

Comentários (19)

Cristian Oliveira Bruno | terça-feira, 26 de Novembro de 2013 - 15:53

Sobre o Santo Cristo atirar tão bem tem o trecho \"Pablo trazia a Winchester 22 e Santo Cristo já sabia atirar\". Acho que esse é o risco de se adaptar uma obra com tantos fãnáticos (como eu): adaptações requerem mudanças, mas sempre irão desagradar os mais ardorosos. Mas no geral, o filme é muito bom.

Marlon Tolksdorf | quarta-feira, 30 de Abril de 2014 - 16:22

O \"casamento\" de Maria Lúcia com Jeremias ficou inexplicável no filme, na música, sem mencionar era muito mais fácil de entender e acreditar do que na ideia (houve uma?) que eles buscaram no filme.

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