Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O testamento e o legado de Billy Wilder para o cinema.

9,0

Há muitos filmes sobre cinema. Entretanto, são poucos os que entretêm uma relação tão sincera e apaixonada com o cinema, ou melhor, com uma parte da sua história, parecendo que esta se faz diante de nossos olhos. Fedora é um desses grandes filmes. As comparações mais freqüentes ao citarem Fedora, o penúltimo filme de Billy Wilder, são com Crepúsculo dos Deuses (o maior clássico do diretor), por causa da temática bastante próxima e pelas semelhanças de tom. Fedora, no entanto, é uma obra que parece mais próxima de peculiaridades comumente associadas aos mais recentes filmes de David Lynch (ainda que com superfícies tão distantes), em virtude de muitas das suas reviravoltas (algumas das quais bem absurdas), de personagens pairando mais como fantasmas do que pessoas de carne e osso, de o filme nos enganar com uma realidade por trás da qual se esconde uma outra ainda mais perversa e de figuras destruídas implacavelmente a partir de suas ligações com o mundo do cinema. Equívocos, desordens e trocas de identidades, inversões de papéis, somados a busca obsessiva pela juventude eterna, e o castigo que a natureza impõe a quem decide desafiá-la nesse sentido.

Essas particularidades devem ter soado grotescas na época de lançamento, portanto, não é de admirar que tenha sido francamente repudiado na estréia. Billy Wilder já havia se utilizado de diversas referências para incrementar seu Crepúsculo dos Deuses, e cerca de trinta anos depois ele volta a se reunir com o seu roteirista habitual, I.A.L. Diamond, para um retorno amargo à cena do crime em uma versão ainda mais desvairada daquele argumento (com atores como Henry Fonda e Michael York interpretando a si mesmos). Dessa vez com um envelhecido William Holden como um produtor falido em plena era da Nova Hollywood setentista querendo filmar com Fedora (Marthe Keller), uma antiga estrela afastada das câmeras e do mundo. Uma espécie de Greta Garbo a qual o filme se diverte em imaginar como centro de uma sucessão de eventos calamitosos enquanto todos acreditam na quietude de sua reclusão.

São personagens que a história deixou para trás, mentalidades já mortas e mesmo em processo de apodrecimento naquele período. Reconhecem que o cinema tal como eles conheciam chegou a um fim, jamais conseguindo reconhecer alguma beleza nos que tomaram os seus lugares e que nunca aceitarão de bom grado a própria morte como classe (o produtor reclama que o cinema estava difícil para os mais velhos, criticando os jovens barbudos da Nova Hollywood que não precisavam de roteiro, apenas de uma câmera na mão com zoom). Fedora é para a geração de Wilder o que Crepúsculo dos Deuses representara para os antigos ídolos do cinema dos anos vinte. Mas o olhar de Wilder não é de rancor nem contra o cinema contemporâneo, apenas nos faz entender o que leva os personagens a agirem e pensarem com amargura, onde a sétima arte é encarada do ponto de vista dessas figuras, das vidas que a movimentam.

O diretor é mais popular por suas comédias ou dramas repletos de cinismo, acidez e que por vezes beiram o sentimental, o que torna ainda mais extravagante um drama pesado como Fedora (com direito a citações à literatura russa) inserido em sua filmografia, mais próximo de Fassbinder do que de outras referências que normalmente se associam a Wilder. De certa forma, por vezes Fedora se assemelha mais a O Desespero de Veronika Voss (a releitura alemã de Crepúsculo dos Deuses filmada poucos depois) do que do seu modelo original da década de cinqüenta.

O filme como que se divide em duas partes: na primeira, a história do produtor tentando salvar a personagem-título; na segunda, uma espécie de ilustração da primeira história, quando depois de nos julgarmos detentores de todos os segredos do filme, Wilder altera nossas perspectivas recolocando Fedora em outra dimensão, revelando o jogo de máscaras e o teatro de aparências que, afinal, é o que movem o seu filme. O que desconcerta e poderá frustrar aqueles que pensam que o segredo de uma trama é o principal na estrutura de um filme, quando na verdade em Fedora o importante não é o desvendamento do seu mistério, mas todo o sentido que essa alegoria representa.

É genial ver um diretor da era de ouro de Hollywood fazendo no final dos anos setenta um filme totalmente anacrônico, mas que acaba se parecendo com o cinema de um tempo futuro (como o do já citado David Lynch), e desse paradoxo todo é que Fedora constrói seu fascínio. E se o filme não é mais consagrado talvez seja por causa da ausência no papel-título de uma atriz com uma carreira extensa mais reconhecível, ainda que Marthe Keller dê conta do recado com o seu desempenho. E também não lembro de muitos outros momentos de sua carreira em que o cineasta tenha sido tão romântico quanto em Fedora, na certa para servir de contraponto ao clima de terror e loucura nessa que é a verdadeira representação de um funeral: o do cinema clássico americano. É o testamento de Billy Wilder.  

Comentários (2)

Marcus Almeida | quinta-feira, 27 de Outubro de 2011 - 12:39

Parece ser um ótimo filme.

Josiel Oliveira | terça-feira, 19 de Abril de 2016 - 15:27

Baita crítica, gostei muito!! Realmente o filme vai muito além da revelação do segredo, e belo título pro texto.

Faça login para comentar.