Alguns filmes se fazem tão presentes no arquivo coletivo da cultura midiática que propor uma avaliação deles é não apenas uma tarefa difícil, mas também inadequada. Como criar um distanciamento crítico para observar uma obra fílmica, por exemplo, que ajudou a definir um dos subgêneros mais longevos do cinema e, mais do que isso, atravessa ainda a constituição de toda uma identidade nacional? Essa é a dificuldade que já se apresenta nesta revisão de A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946) – mais do que um clássico, um filme determinante na própria ideia do que seria um clássico hollywoodiano.
Dirigido por Frank Capra, A Felicidade Não se Compra é a história de George Bailey (James Stewart), executivo relutante de um pequeno negócio familiar na cidade de Bedford Falls, o Bailey Brothers’ Building and Loan, que contempla suicídio após a perda de oito mil dólares da empresa pelo seu tio. A maior parte do filme é apresentada como um conjunto de flashbacks que nos revela como George chegou àquele ponto e quem é esse sujeito. O protagonista, como logo vemos, é uma figura absolutamente altruísta, um exemplo em sua comunidade, sempre fazendo da felicidade de outros a sua própria felicidade.
A Felicidade Não se Compra é mais famoso, no entanto, pelo uso narrativo que faz da fantasia. Percebendo que George está perdendo a perspectiva de sua própria vida, as pessoas que o amam rezam por ele. As orações alcançam o céu, onde um anjo é designado para ajudá-lo. Ao anjo disfarçado como um mendigo, George diz que preferia nunca ter nascido. E a magia de Natal cria justamente isso: um mundo em que ele nunca existiu. Os dois personagens, então, retornam para uma Bedford Falls profundamente transformada pela ausência de George.
James Stewart é a perfeita figura do bom tipo estadunidense que o filme pretende alcançar. O ator interpretou homens de personalidades muito parecidas (o bom inocente, o exemplar de bravura humana) em outros filmes, como A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith goes to Washington, 1939), A Loja da Esquina (The Shop Around the Corner, 1940) e Meu Amigo Harvey (Harvey, 1950). Acredito que o tipo de personalidade que ele representa é atualizada, hoje, na filmografia de Tom Hanks, que poderia ser facilmente imaginado em qualquer um desses papéis de Stewart.
No clássico conto de Natal hollywoodiano, ainda mais um protagonizado por Stewart, não há muito espaço para ambiguidade. O mal não é só delimitado, ele é uma exceção na rede de bondade humana. Capra constrói essa rede com um carisma ímpar (o cinema de Capra é afinal, antes de tudo, um cinema carismático) e o moralismo esperado. Mas é fácil perceber, com A Felicidade Não se Compra, a enorme habilidade com que os estúdios, e seus melhores diretores, consolidaram um sistema moral e afetivo do país – basta pensar como este e outros filmes como ele continuam a ser exibidos e celebrados até hoje.
É importante lembrar, ainda, que A Felicidade Não se Compra é um filme do pós-guerra e é, enfim, uma resposta a esse momento histórico, um convite à recuperação dos ânimos – muito como Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976) seria, 30 anos depois, com a Guerra do Vietnã. Deve ser dito, porém, que esses filmes diferem muito de um outro tipo de resposta que o cinema elaborou para a guerra, uma que toma partido do realismo e de um interesse genuíno pela conjuntura política e ideológica do lugar em que se inserem, como Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945), na Itália, e o enorme Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives, 1946), nos EUA.
Vejo que uma ironia se revela nesse aspecto: nenhum filme se torna atemporal sem ser, inicialmente, anacrônico. A Felicidade Não se Compra é possivelmente a quarta narrativa natalina mais disseminada pela cultura midiática, só fica atrás do conto de Natal de Charles Dickens, do Papai Noel e do próprio nascimento cristão. Não é um filme perfeito, mas é um que imagina um mundo de perfeição possível – ou, ao menos, a sua própria ideia de perfeição humana.
Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro
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