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Críticas

Cineplayers

Os versos da alma.

8,0

Tamanha é a singeleza do título Felizes Juntos (Cheun Gwong Tsa Sit, 1997) que acredito não ser possível determinar outro nome mais apropriado à obra, uma vez que nenhum diferente poderia classificar e exprimir tão bem sua dolorosa mensagem com tanta expressão. No entanto, o sentimento de felicidade não é o ponto que o filme deseja tocar, mas sim a solidão, a tristeza que só encontra alegria quando pode desfrutar do auxílio de outra alma para reconforto. Desse modo, o cineasta chinês Wong Kar Wai desenha um retrato cruel da degradação humana por meio da convicção do isolamento, do ser condenado ao retiro existencial, já que quem mais se ama não está ao seu lado.

Essa é a sentença destinada aos personagens, uma dor que se instala profundamente no âmago do homem e migra para a tela, com a exuberância da estética que ilustra os estados espirituais daquelas criaturas. A lividez do verde que pinta seus dias, a quentura do vermelho que tinge suas noites, o monocromático que estampa memórias ainda não cicatrizadas pelo tempo. São os contrastes estéticos dados pela competente fotografia de Christopher Doyle que o cineasta utiliza para definir a condição de miséria que atinge o cerne de Po-Wing e Yiu-Fai, que clamam por piedade, já que seu sofrimento é maior que suas carcaças humanas podem suportar. Isso é enaltecido pela construção estético-narrativa da obra, que abraça os significados da imagem e os funde à força da própria história.

Aliás, a trama ignora qualquer tipo de pregação social para declarar o amor sobre tudo; a união carnal e espiritual entre dois seres de mesmo sexo, sentimento que acarreta toda a narrativa. O filme é sobre Po-Wing e Yiu-Fai, sobre a ascensão e o caos de sua relação amorosa, sobre a ciência da impossibilidade de manter um convívio perfeitamente harmônico. Enquanto um não é capaz de enxergar uma vida feliz sem seu companheiro, o outro não encontra felicidade na monotonia de uma relação séria. Todos os problemas culminam quando ambos fazem uma viagem à Argentina, e lá seguem rumos distintos, onde enquanto um parece ter finalmente estabilizado a vida sem limites que tanto almejava, o outro adentra cada vez mais no abismo.

A narração em primeira pessoa é então transformada em algo maior que um simples recurso do roteiro, mas uma peça fundamental para compreendermos a extensão do sofrimento de um homem, que através de sua ótica pessoal sobre os acontecimentos, pode enfim enunciar as palavras antes resguardadas em seu âmago. A comunicação entre o corpo e o espírito, um diálogo que conduz por completo a película e torna-se imediatamente sua razão de existir. Por sua vez, o diretor destila um tom contemplativo às suas cenas, com ritmos sempre pausados, amenos (muito embora, em determinados momentos, isso distancie o espectador). Assim, o dito de a imagem falar mais que mil palavras ganha uma definição aqui, já que por vezes o silêncio torna-se nossa única companhia durante a projeção.

Seguindo essa mesma linha narrativa da contemplação da imagem acima de tudo, este trabalho pode ser facilmente equiparado a O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), uma vez que, assim como Kar Wai, Ang Lee demonstra ser um genuíno entusiasta da reflexão pela imagem. Com sua câmera, ele buscava capturar mais que apenas paisagens naturais, e sim elos de comunicação; a natureza possuía vital importância na relação entre Ennis Del Mar e Jack Twist, já que ela era a única testemunha de seu amor, logo detentora de tal segredo. Aqui, no entanto, o painel que envolve os dois homens não possui um efeito tão agregador, isso porque temos a Argentina como guardiã de todo o sofrimento que os envolve, pois a sensação de se estar numa terra estranha, distante de casa, torna as dores da solidão ainda mais agravantes.

E algumas sequências ressaltam essa idéia, como em dado momento, quando um amigo de Yiu-Fai, que breve fará uma viagem, pede-lhe uma lembrança para que permaneça sempre em memória; ele recusa aparecer em qualquer foto e seu colega lhe entrega um gravador para que sua voz sirva como arquivo de recordação. Ao sair e deixá-lo sozinho com a tarefa de falar algo para o objeto, o amigo compreende a necessidade do outro de construir um diálogo consigo mesmo, pôr para fora palavras presas lá dentro. Ele chora. Um pranto talvez decorrente da possibilidade de ficar sozinho novamente, ou até mesmo do fato de não conseguir expressar externamente o que mais lhe agride. Kar Wai reserva esse momento apenas ao homem, sem que o público comungue, para que somente ele perceba a incapacidade seguir em frente carregando tantas chagas.

O desfecho desse conto sobre as ruínas do amor traz um alívio, nem que imediato, para o castigo da alma. Não é uma felicidade completa. E nem poderia ser. Mas é, de todo modo, uma emersão do fundo poço, provinda da compreensão plena a respeito do estado atual do espírito. O amor nem sempre é perene, assim como as relações à base dele; a aceitação desse fato se torna a cura de tanto sofrimento, saber que a única maneira de se extrair da solidão é perceber a impossibilidade de manter uma convivência quando não se há mais harmonia, e assim abrir os braços para a vida, e para o que ela tiver a oferecer. Com elegância, Kar Wai filma, num plano geral, uma belíssima queda d’água (nada poderia ser mais emblemático), para representar o novo, o agora do protagonista, a passagem de seu ‘eu’ antigo para o recente. É lhe dada então uma oportunidade para libertar-se do cárcere a que fora submetido. E enfim recitar para o mundo os versos de sua alma surrada. Ele seguirá em frente, certo de que algumas cicatrizes permanecem, não somente para remeterem à tristeza de um passado, mas à absoluta certeza de se ter vivido intensamente um grande amor.

Comentários (7)

Júnior Souza | segunda-feira, 05 de Setembro de 2011 - 17:51

"Dos trabalhos mais subestimados do cineasta" ???

Basta olhar a quantidade de votos que tem aqui no site. Se não fosse, com certeza seria mais reconhecido. Tê-lo entre os preferidos ou em alta consideração (como eu tenho) não significa que não seja uma obra um tanto esquecida pelo público.

Júnior Souza | segunda-feira, 05 de Setembro de 2011 - 17:52

Espero que goste muito, Patrick. 🙂

Pedro R. Faria | segunda-feira, 05 de Setembro de 2011 - 19:16

Aqui no CP até pode ser.
Mas no geral, esse filme é um dos mais aclamados do Kar Wai, só fica atrás de Amor a Flor da Pele.
Kar Wai ganhou até o premio de melhor direção em Cannes com Felizes Juntos.😁
Enfim, não estou criticando, só não concordo com essa colocação em questão.
No mais, adorei a crítica e fiquei curioso pra ver Brokeback Moutain, vou dar um jeito de ver logo hehe 😁

Júnior Souza | segunda-feira, 05 de Setembro de 2011 - 20:44

Obrigado, Pedro!
Assista mesmo Brokeback Mountain, creio que vá gostar bastante.
Eu, particularmente, acho até melhor que Felizes Juntos.

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