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Críticas

Cineplayers

Ao nosso lado, um pedaço de arte.

8,0
Não é nada difícil acessar Fernando, e esse conforto é benéfico e parece procurado pela sua tríade de diretores, de alguma forma. Igor Angelkorte, Julia Ariani e Paula Vilela empreendem um mergulho íntimo, sutil e bem cadenciado na vida de um homem cuja arte norteou as escolhas, pessoais e profissionais, e define sua passagem por aqui nesses parâmetros. E olhando para dentro da própria obra e feitos de Fernando, construíram um documentário tão internalizado e pessoal que só poderia também ele arranhar as amarras que delimitam as próprias barreiras documentais. Não é difícil imaginar para onde Igor, Julia e Paula olharam, se inspiraram e buscaram respostas, e é muito recompensador ver que todo seu claro afeto por Fernando não os turvou de realizar algo tão conciso e econômico, e essa deve ser uma das principais qualidades do filme 'Fernando'. 

A peça mostrada no filme em cartaz, ensaios e enfim apresentação é a mesma Elefante, no qual eu tinha conhecido Fernando Bohrer anos atrás, belíssima montagem na qual Angelkorte participa como ator e diretor. Ela meio que funciona como cola pro quebra-cabeça que o filme propõe envolvendo a vida e a arte de Fernando, que na verdade é quase tudo uma coisa só. Fernando tem um trabalho tão coeso de pesquisa de montagem e de roteiro, eu quase chego a sentir a quantidade exorbitante de coisa que o trio deve ter deixado de fora. Porque Fernando além de servir como uma inspiração para eles também é um manancial de carinho e sabedoria, isso é muito claro na tela, no palco e pessoalmente. Um homem com um discurso tão profundo e ao mesmo tempo tão simples para a arte como um todo só poderia ele mesmo se transformar em poesia, em projeto fruto de seu desejo de perseverar através da arte e do estudo contínuo da arte. 

O pulo do gato de Fernando talvez tenha sido um problema nascido no meio da feitura. Das necessidades impostas pela realidade, Igor, Julia e Paula se viram obrigados a ficcionalizar algumas passagens do filme. Entendam como ficcionalizar: recriar de maneira não-documental passagens reais. O risco de cair no ridículo ou no forçado pode e deve ter se abatido sobre todos, mas o aspecto híbrido que o todo alcança fala mais alto. E ao mesmo tempo que essa recriação não consegue ser percebida pelo público geral, essa necessidade também deu a Fernando a chance de estar mais uma vez em cena, e tornar ainda mais difusa sua vida e os limites que separam dois elementos intrinsecamente presentes em sua vida, a realidade e a ficção. Mais uma vez, a riqueza da montagem e a funcionalidade dos atos do filme provocam a sensação de que nada disso tem limite, e embaralha os discursos, tornando-os ainda mais fascinantes. 

Fruto da primeira experiência dos três diretores, Fernando é um filme doce, que nasce com as mesmas características da jornada do seu biografado: nas bordas do acolhimento, do afeto, do amor pela arte e pelo palco, da arte da reinvenção, do carinho singelo pelo semelhante, da voz cansada pelo ativismo político mas ainda potente, não foi a toa que o longa saiu com dois prêmios do último Olhar de Cinema (melhor filme - júri popular, entre eles). Fernando é a síntese do homem ao lado a primeira vista, mas cuja trajetória daria não apenas filme como também livro. Ao se embrenhar no dia a dia de Fernando, conhecemos não apenas um maravilhoso e desvelado ser humano, com idiossincrasias e memórias como tantos já retratados em fotograma; a ferrenha dedicação ao próximo, além de sua emocionante ligação com a representação (como ator ou mestre), abrem a nossa frente uma singular e infelizmente pouco conhecida parcela de nossa bolha, pessoas que não se fecharam na adversidade e no impedimento. São realizadores acima de tudo, e que prazer é acompanhar flashes desse artesão. 

Visto no 6º Olhar de Cinema de Curitiba

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